As inacessíveis moradias brasileiras (tradução)

Postado em: 1st agosto 2014 por Vanessa Barbara em Traduções

International New York Times
30 de julho de 2014

por Vanessa Barbara

SÃO PAULO, Brasil – Moro no Mandaqui, um bairro localizado a onze quilômetros do centro. A estação de metrô mais próxima fica a quatro quilômetros de distância, ou cerca de 30 minutos de ônibus, já que estes são lentos e escassos. Não é o melhor lugar para se viver sem ter um carro. Ainda assim, o preço médio por metro quadrado recentemente aumentou para R$ 6.085. Imóveis em áreas mais nobres da cidade podem custar até R$ 11.179.

Nos últimos seis anos, o valor dos imóveis em São Paulo aumentou 208%, e o preço do aluguel cresceu em 97,5% na área metropolitana. De acordo com o site Numbeo, que compila dados fornecidos pelos usuários, um apartamento de 90 metros quadrados por aqui custa o equivalente a dezesseis anos de uma renda familiar padrão. A título de comparação, esse índice preço-renda é de oito em Nova York, 6,9 em Berlim e apenas três em Chicago. No Brasil, uma família que ganha um salário mínimo (R$ 724) consegue apenas bancar o aluguel de um barraco de três cômodos na Favela Paraisópolis (R$ 620), mas não sobra praticamente nada para viver.

Hoje o Brasil sofre de um déficit habitacional extremo. De acordo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, uma em cada três famílias vive em residências inadequadas. O país tem um déficit de 5,8 milhões de habitações, 90% concentrado nas classes mais baixas (famílias que ganham menos de três salários mínimos). Segundo uma pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro, 442.710 famílias em São Paulo gastam 30% ou mais de seus salários com o aluguel. Essas famílias correm o risco de se juntar a 44.699 outras que vivem em habitações precárias e 83.011 nas quais pelo menos três membros da família se espremem no mesmo cômodo – uma solução de adensamento excessivo que tenta suprir uma situação sem saída.

Cada vez mais, os pobres são expulsos da cidade e forçados a viver em subúrbios distantes. Cada vez mais esses subúrbios também os expulsam. Em Capão Redondo, a 23 quilômetros do centro, o preço médio do imóvel aumentou 312% nos últimos cinco anos.

Não surpreende que sejamos o país das favelas, dos cortiços urbanos erguidos por cidadãos desesperados utilizando materiais de baixa qualidade como papelão e latão. Elas surgem em áreas sem infraestrutura ou saneamento básico, às vezes vulneráveis a deslizamentos, enchentes e incêndios.

No início de 2009, o governo reconheceu o problema e lançou um programa chamado Minha Casa, Minha Vida. A parceria público-privada almejava reduzir esse déficit facilitando o crédito imobiliário e financiando construções.

Mas, desde o início, o projeto favoreceu famílias que ganhavam mais do que três salários mínimos. Em 2012, após a primeira e a segunda fases do programa, apenas 40 a 45% de todos os contratos foram efetivamente destinados às famílias mais pobres. O projeto parecia ter mais o objetivo de impulsionar a economia do que de ajudar os mais desfavorecidos. Muitos críticos também reclamaram da qualidade das casas de 32 metros quadrados destinadas aos mais pobres, construídas em áreas remotas sem infraestrutura adequada.

Embora o governo tenha prometido corrigir essas deficiências no terceiro estágio do programa, qualquer tipo de reforma irá fatalmente tropeçar na influência do setor imobiliário e empreiteiro. De acordo com o site de jornalismo investigativo Publica, de 2002 a 2012 as quatro maiores empreiteiras do Brasil doaram R$ 479 milhões para campanhas políticas de todos os partidos. Nas últimas eleições municipais em São Paulo, segundo a ONG Repórter Brasil, empresas ligadas ao setor de construção civil e do ramo imobiliário foram responsáveis por 57% de todas as doações de campanha. Essas empresas têm grande interesse em sustentar o velho modelo de urbanização marcado pela segregação e pela desigualdade.

Uma das organizações mais fortes que tenta lidar com esse assunto é o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que alia táticas de negociação ao confronto direto com o governo em questões habitacionais. O grupo conta com 50 mil famílias no país inteiro e 20 mil só em São Paulo, onde, numa quinta-feira chuvosa pouco antes da Copa do Mundo, conseguiu reunir 15 mil pessoas num protesto contra as remoções e os gastos excessivos do evento da FIFA.

A organização defende a ocupação de áreas abandonadas ou mantidas vazias pelas grandes empresas (algumas delas falidas); a resistência às remoções forçadas; e a expropriação de habitações por “necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social”, conforme previsto na nossa Constituição. Seus líderes também citam a Constituição quando dizem que “a propriedade atenderá a sua função social”, e que a ordem econômica “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.

Por muitos anos, o MTST enfrentou a oposição feroz do público e da mídia. Mas, nos últimos meses, angariou vitórias importantes. Um mês antes da Copa, mais de 2 mil famílias ocuparam uma área abandonada havia anos, próxima ao estádio Itaquera, somando-se a outras oito ocupações em São Paulo. (A maior delas, Nova Palestina, tem aproximadamente 8 mil famílias acampadas desde novembro.) Em questão de semanas, os ativistas de Itaquera conseguiram convencer o governo a construir habitações populares no local, como extensão do programa Minha Casa, Minha Vida. 

O MTST também conquistou mudanças no próprio programa: persuadiu o governo a destinar uma parcela maior de contratos de financiamento habitacional a organizações sociais, em vez de mantê-los quase que inteiramente nas mãos das construtoras, garantindo maior autonomia e, talvez, casas melhores em regiões mais centrais. O MTST também entrou no debate sobre o recém-aprovado Plano Diretor de São Paulo, que irá implementar mais mecanismos de controle da especulação imobiliária, previstos originalmente no Estatuto das Cidades, e irá duplicar o número de Zonas Especiais de Interesse Social na cidade.

Para o grupo, ter uma moradia adequada é um direito humano que não deveria ser ditado unicamente pela lógica de mercado. O argumento é convincente, sobretudo quando se analisam os números: há mais de 6 milhões de habitações vazias no Brasil – mais do que o suficiente para sanar o nosso déficit.


Este texto foi publicado em inglês no The International New York Times do dia 30 de julho de 2014. Tradução da autora.