Biblioteca de lunáticos – Parte 2

Postado em: 7th agosto 2012 por Vanessa Barbara em Blog da Cia. das Letras, Crônicas

Blog da Companhia das Letras
7 de agosto de 2012

por Vanessa Barbara

No longínquo mês de abril do ano corrente, enumerei no blog algumas de minhas leituras psiquiátricas preferidas. Certos leitores escreveram apontando lacunas, de modo que aí vai uma segunda parte.

1) A assustadora história da medicina, de Richard Gordon, Ediouro. Recomendado pelo leitor Fred Spada, que tem nome de automóvel, este livro é um dos mais esquisitos que já li. É confuso, mal engendrado e precisaria de um bom editor. Ainda assim, há passagens muito boas sobre a caótica evolução da medicina, que, nas palavras de Fred, parece ter sido algo ao estilo: “Doutor, substituímos o prego por uma agulha e agora a seringa parece funcionar direito”.

Gordon fala, por exemplo, de uma paciente de Freud que sofria de fadiga generalizada e do sintoma curioso de ser perseguida pelo cheiro de pudim queimado. Fala de micróbios e da axila da rainha Vitória, de anestesia e dos primórdios da vacinação, quando as pessoas inoculadas com o vírus da varíola bovina tinham medo de se transformar em vacas. “Hoje, um terço das mortes do mundo tem alguma relação com moscas”, informa.

Gordon aborda também a questão dos piolhos e da luta contra o escorbuto, de início absolutamente aleatória. “O capitão Cook recomendava geleia de cenoura e mosto de cerveja. Vinagre, para tomar ou lavar o convés, óleo de vitríolo e enterrar o paciente até o pescoço, na terra fria, todos esses métodos tinham seus defensores.”

Contra verrugas: “Toque cada verruga com uma pedra diferente, ponha as pedras numa bolsa, deixe cair a bolsa a caminho da igreja, quem encontrar vai ficar com todas as suas verrugas. Ou procure um homem que nunca viu o próprio pai e peça para tocar no seu casaco. Como profilaxia, nunca deixe seus filhos tocarem na água onde foram cozidos ovos.”

Gordon menciona a biografia de gente ilustre como Florence Nightingale, que costumava bater irritadamente as tampas abertas das privadas, e Osborne Mavor, autor de um artigo definitivamente científico sobre nosso centro anatômico, “O Umbigo”, que, segundo ele descobriu, pode ser atacado por oito doenças. Ou John Coakley Lettsom, fundador da Sociedade de Medicina de Londres e de várias outras instituições de caridade, como a Sociedade para a Libertação e Ajuda a Pessoas Presas por Pequenas Dívidas, e a Sociedade Real Humanitária para Ressuscitação dos Aparentemente Mortos.

2) Amor sem fim, de Ian McEwan, ed. Companhia das Letras. Após testemunhar um trágico acidente de balão, um escritor de artigos científicos vira alvo de uma paixão patológica. A fixação do desconhecido chega aos limites da perseguição e da loucura, transformando a vida do protagonista.

O longo capítulo inicial sobre o acidente é ritmado, tenso e muito bem construído. Mas minhas partes preferidas do livro são os dois apêndices, em que, de forma original, o autor segue narrando a história.

O melhor deles é um estudo de caso publicado na revista British Review of Psychiatrypelos drs. Robert Wenn e Antonio Camia, que obviamente não existem, sobre a síndrome de Clerambault. Em linguagem acadêmica, os nobres doutores falam sobre esse tipo de erotomania que se caracteriza pela obsessão amorosa por alguém mais velho e de maior status social, com um detalhe: o portador dessa síndrome tem absoluta certeza de ser correspondido.

McEwan aproveita o posfácio científico para recontar o caso ao leitor, fornecendo detalhes omitidos pelo narrador, e para dar uma conclusão ao romance, lançada em meio a uma porção de notas de rodapé e descrições da patologia.

Na época do lançamento do livro, inúmeros resenhistas (inclusive psiquiatras) julgaram se tratar de um artigo verdadeiro, até que McEwan veio a público declarar que o apêndice era ficcional, baseado no romance que o precedia — em vez de se passar o contrário. Ele chegou a enviar o artigo a uma revista de psiquiatria, que polidamente o recusou. “Se fosse publicado, seria delicioso ter que pedir permissão para citá-lo”, confessou o romancista numa entrevista ao The Guardian. “Para um escritor, é uma tentação poder bagunçar a fronteira entre ficção e realidade, pois isso dá à ficção uma credibilidade extra e confunde o factual. Também escrevi esse apêndice por exibicionismo linguístico — só queria provar que conseguia fazer.”

Fico aqui pensando quem é mais doido.

3) O estranho caso do cachorro morto, de Mark Haddon, ed. Record. O menino Christopher Boone tem 15 anos e sofre de síndrome de Asperger, uma forma de autismo caracterizada pela dificuldade de interagir socialmente e de expressar emoções, bem como de aceitar mudanças. Os portadores dessa síndrome muitas vezes possuem habilidades incomuns, como memorização de mapas e sequências matemáticas.

Neste romance, indicado pelo leitor Rogério Moraes, o narrador sabe muita coisa de astronomia e pouquíssimo sobre seres humanos. Adora listas, padrões e a verdade. Odeia o marrom, a França e ser tocado. Certa madrugada, encontra o cão do vizinho morto e passa a investigar o crime.

Embora não seja um dos meus livros favoritos, há um jogo interessante com o narrador, que, afinal de contas, sofre de uma síndrome que interfere justamente no processo de comunicação. Seu pensamento é estruturado de forma bastante concreta e literal, prejudicando sua capacidade de interpretar ironias e metáforas. É assim que o livro é narrado: de forma direta, por vezes obsessiva.

Os capítulos seguem “números primos, que são úteis para escrever códigos e por aqui são considerados assunto militar, e se você encontrar um com mais de cem dígitos tem que contar para a CIA e eles te compram por 10 mil dólares. Mas não seria um jeito muito legal de ganhar a vida”.

Boone é um personagem divertido e cheio de angústia, que se lança à investigação com toda a coragem necessária para puxar assunto com os vizinhos. “Às vezes, quando estou num lugar novo e cheio de gente, há tipo um tilt de computador e eu tenho que fechar os olhos e tampar os ouvidos e grunhir, que é o meu jeito de apertar CTRL+ALT+DEL e fechar os programas e desligar o computador e reiniciá-lo, a fim de que eu possa me lembrar do que estava fazendo ali e para onde estava indo.”

4) Afluentes do rio silencioso, de John Wray, ed. Companhia das Letras. Traduzido por esta vossa humilde serva, o romance segue a mesma linha de O estranho caso do cachorro. É narrado por William Heller, jovem de 16 anos que sofre de esquizofrenia. Acometido de um delírio, ele suspende a própria medicação, foge da clínica psiquiátrica onde estava internado e empreende uma jornada pelo metrô de Nova York, com um detetive particular a seu encalço. “Sou um prisioneiro do meu próprio crânio”, ele pensa. “Refém do meu sistema límbico. Não há saída senão pelo meu nariz.”

Assim como Christopher Boone, William possui uma série de rituais que executa quando se vê ansioso ou em terreno desconhecido: repassa uma série de coisas preferidas, checando-as na ordem como se fossem contas de um terço. As primeiras oito ele recita de memória: obeliscos, tinta invisível, a mãe, snowboard, o Jardim Botânico do Brooklyn, Jacques Cousteau, Bix Beiderbecke e o metrô.

“Estou conseguindo fazer piadas de novo”, ele pensa, após ter suspendido a medicação por conta própria. “Estúpidas, mas não importa. Nunca conseguiria ter feito piadas ontem.”

5) A lua vem da Ásia, de Campos de Carvalho, ed. José Olympio. Um esquecimento lamentável na primeira escalação, o romance de Campos de Carvalho fala sobre um sujeito que vive no que pensa ser um campo de concentração, mas que antes julgava ser um hotel de luxo, e que na verdade é um manicômio. “Não sei dizer se fica na Europa ou na Ásia ou mesmo na Polinésia.” Numa prosa fragmentada, absurda e frenética, ele tenta dar sentido às coisas, sem sucesso. O livro é brilhante e tem um dos inícios mais célebres da literatura brasileira:

“Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa — e qual defesa seria mais legítima? — logrei ser absolvido por cinco votos a dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.”

6) “Minha fantasma”, em Ensaio Geral, de Nuno Ramos, ed. Globo. Outra ausência imperdoável na primeira divisão desta lista. Trata-se de um curto relato do artista plástico Nuno Ramos sobre os seis meses de uma crise de depressão severa da esposa, suas idas aos médicos, os cuidados, os horários de remédios, o cansaço e a impotência. É um texto lindo sobre “um amor imenso e cansativo, que deve dizer bem alto: eu quero você mesmo assim. Ou algo ainda antes disso, já que ela é a mesma pessoa, apenas confusa, como quem circula pela casa sem encontrar a porta do próprio quarto”.

Toda vez que leio esse texto de Nuno, penso em como deve ter sido, para ela, ter alguém tão constante, tão certo, tão leal, alguém que desconfiou de um determinado médico “não pelos motivos habituais (pêlos atrás da orelha, voz melíflua, olhar excessivamente demorado, roçar de uma palma da mão na outra). Achei, apenas, que não gostava dela”.

Um médico que, segundo ele, parecia ser alguém que tocava violino, como um judeu de Chagall. “Devia ter uma coleção enorme de selos e uma mãe severa. Devia raspar um prato fundo de caldo de carne com a gema de um ovo batido todas as manhãs, pra ficar bem forte. Mas na verdade é baixo e atarracado e suas pernas não se desenvolveram tanto quanto o tórax, e o próprio tórax não se desenvolveu tanto quanto as feições elásticas do seu rosto — por isso não pode esconder certa fração de paraplegia, de paralisia infantil, certa dessemelhança entre a metade de baixo e a metade superior do tronco, como um Tratado das Tordesilhas cravado em sua cintura que torna apenas mais perverso seu sorriso forçosamente bondoso.”

Não sei por quê, mas acho essa passagem do médico particularmente tocante — há uma solidariedade muda que perpassa o texto inteiro, preenchendo inclusive as lacunas do vazio. Por vezes, o autor hesita diante de tanto sofrimento e é arrastado pela maré da tristeza dela, mas continua ao seu lado dia após dia, enquanto ela chora e chora, “chora por ser covarde, chora principalmente porque não pode parar de chorar. Não há ventos fortes nem tufões, mas uma monotonia de laguna excessivamente salgada onde os peixes não conseguem sobreviver”, conta.

“A cura não é o raio de sol depois da tempestade, nem uma lufada de ar no quarto pestilento, mas haver o quarto, e sol como o conhecemos, e vento como desde que somos pequenos. É o mundo ser redondo e o oceano ser salgado. Isso é a cura, o tédio bem-vindo. Então é isso que ela ataca e protela, voltando a alto-mar enquanto lhe acenamos da praia monótona.”

A certa altura, não estamos mais falando de depressão, mas de amor.

  1. domovique disse:

    Esse começo de A lua vem da Ásia é mesmo um dos mais legais da literatura brasileira, tão gostoso de decorar e ler em voz alta quanto o começo de Retrato do artista quando jovem.

    E o garoto d’O estranho caso do cachorro morto é tão correto que, pensando agora, demoro pra lembrar do fator psiquiátrico. Me senti meio atrasado e quase insensível em alguns trechos.

    Daora essa lista. Muito louca.