Olha! Uma salsicha falante!
Artifícios suaves e estrambóticos para você mesmo espantar o chamado demônio do meio-dia

Revista Vida Simples
n. 101 – Janeiro de 2011

por Vanessa Barbara

 

Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), a depressão é a maior causa de incapacitação de adultos e afeta 120 milhões de pessoas em todo o mundo (17 milhões no Brasil). Na literatura médica, as diretrizes para o tratamento de primeira linha são os antidepressivos de última geração, mais seletivos farmacologicamente, com melhores índices terapêuticos e menor incidência de efeitos colaterais. Uma opção comum é o uso de inibidores seletivos de recaptação da serotonina (ISRSs), como sertralina ou fluoxetina, associados ou não à psicoterapia comportamental.

Dependendo da resposta do paciente, o passo seguinte é a manutenção, o aumento da dose ou a troca de medicamento. Cerca de 30 a 50% dos casos não reagem suficientemente à primeira tentativa farmacológica. Os tricíclicos e os inibidores da monoamina oxidase (IMAOs), além de outros inibidores e antagonistas diversos, podem ser prescritos nessa fase, com ou sem a potencialização de outros agentes (lítio, hormônio da tireóide, estrogênio, buspirona).

Na maioria dos casos, é preciso no mínimo duas semanas para o remédio fazer efeito. Alguns pacientes só melhoram após 6 semanas, e, pior ainda, há os que vão aumentando a dose, aguardam meses e finalmente desistem, por falta absoluta de resposta. Esses irão recorrer a um segundo, a um terceiro e a um quarto tipo de medicamento – as estatísticas mostram que até 50% dos pacientes não respondedores a uma primeira tentativa também não responderão a um segundo curso de tratamento diferente. De fato, a probabilidade de reagir a um antidepressivo declina num fator de aproximadamente 15% a 20% para cada tratamento anterior que tenha falhado.

Pensando nessas pobres almas é que efetuamos um guia com técnicas pitorescas para afastar a depressão, atenuantes temporários para aquelas duas semanas de espera ou após a décima consulta fracassada, enquanto a cura não vem. Essas soluções mambembes não substituem nenhum tipo de intervenção medicamentosa ou psicoterapêutica e se destinam apenas a gerar distração em pacientes para os quais cada gole d’água é excessivamente trabalhoso.

Andrew Solomon, autor de O demônio do meio-dia, um dos melhores tratados existentes sobre a depressão, conta a história de uma sobrevivente de Dachau que, para não enlouquecer, decidiu pensar apenas em seus cabelos. “Pensava em quando poderia lavá-los; em tentar penteá-los com meus dedos. Passava horas combatendo os piolhos. Isso fazia com que minha mente se concentrasse em algo sobre o qual eu podia exercer algum controle, e preenchia minha mente de tal modo que me permitisse deixar de fora a realidade dos acontecimentos à minha volta, possibilitando que eu atravessasse aquele período.”

Além de saudavelmente dispersivas, essas técnicas servem para que os pacientes aprendam comportamentos que possam protegê-los contra uma piora ou recidiva.

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Um dos princípios fundamentais da terapia cognitivo-comportamental é a relação existente entre situação, pensamento, sentimento e comportamento, de modo que a mudança de só um desses itens influenciaria todos os outros. A estratégia subjacente da TCC, portanto, seria forçar o pensamento a seguir certos padrões e assim evitar os caminhos habituais que levam à depressão.

Ou vice-versa. Nesse caso, uma das táticas possíveis é monitorar as atividades diárias e estimular as que são geradoras de prazer, acrescentando sempre algo de muito agradável ao longo do dia. Além de teoricamente válida, essa estratégia tem lá seus atrativos.

Na depressão, o paciente perde o gosto pelas coisas, e a chave é encontrar algo que ainda conserve em si um fiapo de diversão, como um sorvete esperando na geladeira ou a foto de um bebê envolto numa margarida, e assim começar a resgatar os prazeres, um a um. “Os estudos não estão disponíveis, mas uma boa dieta de lagosta e mousse de chocolate pode fazer muito para melhorar o ânimo de alguém”, garante Solomon.

O benefício adicional dessas tarefas é ativar o circuito estímulo–recompensa associado a atividades manuais. Na doença, há falta de gratificações, de concentração, de movimento, de estímulos. Experimentos liderados pela psicóloga Kelly Lambert, da faculdade Randolph-Macon, na Virgínia, mostraram que tarefas prosaicas como limpar o chão, tricotar ou organizar as gavetas incentivam a produção de substâncias que deixam o sujeito mais persistente e concentrado. A questão não é o que se faz, mas onde se chega com o esforço.

Em O demônio do meio-dia, Solomon fala de uma mulher que mantém na parede do quarto uma lista de coisas a fazer quando está começando a se sentir desanimada e entediada. A lista começa assim: “Ler cinco poemas infantis. Fazer uma colagem. Olhar fotografias. Comer um pouco de chocolate”.

A seguir, apresentamos dez sugestões para despistar a depressão, sem necessariamente ter que apontar alguma coisa à distância e gritar: “Olha lá! Uma salsicha falante!”.

1. Fazer coisas com fios

No livro de Solomon, uma moça conta que passou anos trocando de medicação, sem sucesso, até que finalmente descobriu a solução verdadeira para curar a depressão: “fazer coisas com fios”. Taí a primeira sugestão.

Nessa categoria, incluem-se trabalhos artesanais que tragam relaxamento e satisfação, como costurar, tricotar, pintar, desenhar, esculpir, espremer gelatina, consertar um radinho de pilhas, martelar a esmo, pintar as unhas dos pés (dos outros), montar uma armadilha de dominós, assar um porco-pizza e cobrir as paredes de tinta amarela. É importante usar as mãos, pois elas dão uma importante sensação de controle. Sujar-se é igualmente recomendado.

Limpar, esfregar e organizar também se enquadram nesse item. As grandes empreitadas são as mais auspiciosas: organizar todas as gavetas do escritório, separando os documentos por cor e utilizando caixas transparentes com etiquetas, post-its e cola colorida.

2.  Arrumar um professor de sapateado

Um leitor de Andrew Solomon ofereceu-se para ajudá-lo a encontrar um bom professor de sapateado. Nesse campo, vale tudo: inscrever-se em aulas de rockabilly, aprender o cha-cha-cha, fazer ioga, comprar uma cama elástica, pular corda, inscrever-se num curso para terceira idade no Sesc, assistir uma videoaula de artes marciais, jogar badminton, andar de bicicleta, balançar, chutar, girar e empurrar à vontade. Vale optar por videogames bruscos como o Wii.

3. Mexer com terra

Aqui se inclui todo tipo de contato com o chão, seja na jardinagem, na escultura de areia, rolando ou deitando na grama do parque. Esticar-se para acompanhar o passeio de suas tartarugas sob o ponto de vista dos quelônios também vale. O fator sujeira está implícito na atividade e é mandatório. Ainda que não haja comprovação estatística, é certo que sentar no chão sem motivos específicos ajuda a tratar moléstias do humor.

4. Render-se ao videoquê

Escolher as músicas mais bregas no Guitar Hero ou num bar de videoquê pode ser vital para a recuperação de um deprimido reincidente. Entre as sugestões mais sensatas podemos destacar o heavy metal melódico, os refrões estridentes de clássicos do rock, os Twisted Sisters e, é claro, o Ney Matogrosso. Quanto mais gritaria, melhor. Quanto mais desafinado, também.

5. Solucionar grandes mistérios

Lançar-se em busca de uma caneta perdida, um quebra-cabeças de 4 mil peças, os extras de um filme ruim, um livro de palavras cruzadas, a vida do vizinho da frente, um crime imaginário. O importante é se envolver pela coisa: procurar tudo sobre Joseph Mengele, Bob Esponja, as guerras púnicas, “Perdidos no Espaço” e o cozimento das alcachofras. Jogos de tabuleiro se incluem nesta categoria.

6. Estabelecer uma trilha sonora

Em The anatomy of melancholy, Robert Burton diz que não há remédio melhor do que a música para aliviar um coração melancólico. Em muitos casos, só ela consegue penetrar no estado de anedonia e conferir uma sensação de prazer e de estar vivo, mesmo que temporariamente.

O neurologista Oliver Sacks, em Alucinações musicais, acrescenta que há determinadas composições com o poder de produzir efeitos cruciais num dado indivíduo, em um momento específico. Ele cita o exemplo de um suicida que ouviu por acaso uma passagem de Rapsódia para contralto, de Brahms, e o som que antes lhe era indiferente perfurou seu coração como uma adaga. “Numa torrente de rápidas recordações pensei em todas as alegrias que a casa conhecera: as crianças que haviam corrido por seus cômodos, as festas, o amor e o trabalho”, diz ele. “Algo dentro de mim aqueceu-se e me amoleceu”, conta outra paciente de Sacks.

Não dá para prever o tipo de música capaz de vencer a barreira e liberar os sentimentos obstruídos de alguém. O poder da música, para trazer alegria ou catarse, tem de insinuar-se sem ser percebido, “chegar espontaneamente como uma bênção”, diz Sacks.

Isso não nos impede de elaborar uma trilha sonora específica para os momentos de crise – podem ser faixas alegres, trágicas, evocativas, enfim, que possam causar algum tipo de impressão. Convém testar a reação pessoal a diferentes tipos de música, pois às vezes a chave está na batida – a bossa-nova, por exemplo, costuma dar certo com os mais apáticos. O punk rock pode aliviar espíritos mais melancólicos, ao passo que o rockabilly tem o benefício adicional de incentivar o ouvinte a arriscar uns passos de dança. Há quem tenha superado a depressão com uma hora diária de remelexo ao som de ritmos caribenhos.

Alguns títulos que não têm como dar errado: “On The Sunny Side of the Street”, Louis Armstrong; “I Feel Good”, James Brown; “Good Vibrations”, Beach Boys; “Here Comes The Sun”, Beatles; “O Jumento”, Chico Buarque; “Cheek to Cheek”, Fred Astaire; “I Got Rhythm”, Ella Fitzgerald; “Rock And Roll All Nite”, Kiss; “Hallelujah”, Leonard Cohen; “Potato Head Blues”, Louis Armstrong; “Lithium”, Nirvana; “Alive”, Pearl Jam; “Do You Wanna Dance?”, Ramones; “Today”, Smashing Pumpkins; “So Happy Together”, The Turtles; “Island in the Sun”, Weezer; “Beautiful Day”, U2; “Song 2”, Blur; “Don’t Worry Be Happy”, Bobby MacFerrin; “Shiny Happy People”, R.E.M.; “Paradise City”, Guns N’Roses, “Blue Skies”, Ella Fitzgerald; e, por fim, “O Pato” e “Bolinha de Papel”, João Gilberto.

Só tome cuidado para não ouvir sem querer “I Am a Man of Constant Sorrow”, do Bob Dylan, e nem o último álbum do Radiohead, para não invalidar todo o tratamento.

7. Apegar-se ao radinho de pilha

Em O demônio do meio-dia, o pesquisador Seth Roberts, do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia, sustenta a teoria de que há um tipo de depressão vinculada a acordar sozinho, e que a experiência de assistir a um apresentador de TV falando por uma hora no início do dia pode ajudar. Acrescentamos a isso a presença constante de um radinho de pilha, sintonizado na faixa AM, de preferência num programa de esportes ou de trânsito. Também serve ir puxar conversa com o porteiro.


8. Preparar coletâneas

Pode ser uma lista de sobremesas distribuídas pelos dias da semana. Ou um catálogo pessoal de livros, poemas ou contos favoritos. Pode ser uma coletânea dos melhores amigos (segunda é dia do Cabelo, terça é do Bruno e do Bob). Ou de programas tolos para planejar (ir ao zoológico, ao planetário, ao pico do Jaraguá, ao sítio da incrível morsa turca que dança). É importante registrar seu “best of” pessoal, a fim de evocá-lo em momentos de angústia.


9. Ensinar alguém a descascar pepinos

Em O demônio do meio-dia, Solomon fala de uma moça que passou horas sem conta tentando ensinar à companheira de quarto como descascar um pepino. Nessa categoria, são válidas todas as interações sociais, por mais fugazes que sejam, sobretudo com desconhecidos.

Nesse mesmo livro, há o relato de uma sobrevivente do massacre cambojano que praticava a psicologia com esmaltes coloridos, empurradores de cutícula, toalhas e lixas de unha. Ela começou a fazer as mãos e os pés das amigas, que pouco a pouco se puseram a conversar e a dividir suas experiências.

10. Apelar

Se nada disso funcionar, é hora de partir para a ignorância. Filmes dos Irmãos Marx, livros de piadas do Costinha, trocadilhos tolos, stand-ups do Richard Pryor, músicas do Mario Lanza, romances do Douglas Adams, textos do Woody Allen, palhaços, mágicos, trapezistas, engolidores de fogo e a piada mortal, que é a seguinte:

“Era uma vez um porquinho que tinha uma perna só. Ele foi se coçar e caiu.”

Para Solomon, o senso de humor é o maior indicativo de que o indivíduo se recuperará. “Aguente o tempo de espera e ocupe esse tempo tão plenamente quanto puder”, ele recomenda.

E termina com uma nota esperançosa: “Pessoas que atravessaram uma depressão e estão estabilizadas frequentemente têm uma aguda consciência da alegria da existência cotidiana. Mostram-se capazes de uma espécie de êxtase imediato e de uma intensa apreciação por tudo que é bom em suas vidas”. Ou seja: valorizam o chocolate, o tricô, as tartarugas, a ginástica rítmica, o desenho do Bob Esponja, o rádio de pilha, o mar, o glorioso time do Olaria e o vizinho da frente, que, dizem, é a cara do Dudley Moore.

  1. Pacheco disse:

    Adorei! Fantástico mesmo. A listinha de músicas é muito boa.

  2. Felipe Lucena disse:

    Muito bom! Esse texto torna a depressão divertida. Deveria ser usado no tratamento da doença ;)