#107 – São Paulo, 9 de junho de 2025
A Abominável Mãe Oculta das Neves
www.hortifruti.org

“Dizem que quem entra na réstea vira cebola”
(Carolina Maria de Jesus)

“Por toda parte, até mesmo na China, trabalhar à noite é para homens”
(Franz Kafka)

:: EDITORIAL :

No século XIX, tirar um retrato infantil era uma tarefa complexa. O longo tempo de exposição exigido pelas câmeras fotográficas – de trinta segundos ou mais – significava que a criança precisava ficar imóvel por um período excruciante. O leitor que tente botar um nenê em cima de uma poltrona e esperar que ele fique parado – é virtualmente impossível.

Foi assim que surgiu o fenômeno da Mãe Oculta [Hidden Mother], um gênero fotográfico que consiste em usar a mãe como suporte físico para a criança, posteriormente fazendo de tudo para escondê-la do retrato final.

O resultado é bastante deprimente: cotovelos avulsos, mangas de vestido, mãos fantasmagóricas, véus com formato humano, mulheres disfarçadas de cadeiras. O fotógrafo Geoffrey Batchen comenta que essas imagens “dão como certa a nossa capacidade de ‘não ver’ certas coisas quando isso nos convém. […] Somos invariavelmente convidados a não perceber a incongruência de balaustradas falsas em cima de tapetes ou a artificialidade de fundos pintados e outros elementos cenográficos evidentes”.

A prática da Mãe Oculta perdurou até os anos 1920, quando as câmeras ficaram mais eficientes e a mobília humana foi dispensada.

Nesta edição, publicamos alguns desses singelos retratos.

The Hidden Mother, Linda Fregni Nagler (Mack, 2013)
Hidden Mother, Laura Larson (Saint Lucy Books, 2017)

Museum of Fine Arts, Boston, doação de Lee Marks e John C. DePrez Jr. (2019.1843), (2019.1879), (2019.1855)

:: SORTEIO ::

A vencedora do sorteio realizado em 1o. de junho foi Fernanda Silva, de Niterói, que vai receber em casa um livro de contos da Gertrude Stein, um adesivo aleatório de guarda-chuva e uma carta de tarô indicando qual é o seu legume padroeiro.


:: PULA-PULA ::
Honor Jones, “The Only Two Choices…

Elas [as crianças pequenas] testam com o dedão do pé a superfície da linguagem, mas logo a estão tratando como um castelo inflável — dando cambalhotas, se atirando contra as paredes.

[They test with a toe the surface of language, and soon they’re treating it like a bouncy castle, somersaulting, throwing themselves against the walls.]


:: COM UM MATA-MOSCAS ::

Lauren Collins, “How a Hazelnut Spread Became…

Sua formulação capta a dinâmica íntima, intensa e volátil que existe entre os dois países desde, pelo menos, o incidente do coup d’éventail em 1827, quando o governador da regência de Argel golpeou o cônsul francês com um mata-moscas durante uma disputa sobre um empréstimo pendente, dando eventualmente aos franceses um pretexto para invadir o país.

[His formulation captures the intimate, intense, and volatile dynamic that has existed between the countries since at least the coup d’éventail affair of 1827, when the dey of Algiers struck the French consul with a flyswatter over a dispute about an outstanding loan, eventually giving the French a pretext to invade.]


:: FRIO ::
Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo

Eu sinto muito frio. Costumo vestir três palitó. E tem pessoas que me vê nas ruas e diz: — Como você engordou! Já se foi o tempo que a gente engordava.


:: CACHO DE UVAS ::
Mark Haddon, The Curious Incident Of The Dog In The Night-Time

E não existem linhas no espaço, então você poderia ligar partes de Órion a partes de Lepus, Touro ou Gêmeos e dizer que formavam uma constelação chamada O Cacho de Uvas, ou Jesus, ou A Bicicleta (exceto pelo fato de que não existiam bicicletas nos tempos romanos e gregos, que foi quando chamaram Órion de Órion).

[And there aren’t any lines in space, so you could join bits of Orion to bits of Lepus or Taurus or Gemini and say that they were a constellation called The Bunch of Grapes or Jesus or The Bicycle (except that they didn’t have bicycles in Roman and Greek times which was when they called Orion Orion).]


:: NOVO DESAFIO ::
Amy Wilson, Happy to Help

Voltei para casa e fiz o que sempre faço diante de um novo desafio: reunir pesquisas suficientes para dar um curso introdutório de nível universitário.

[I went home and did what I always do in the face of a new challenge: compile enough research to teach an intro-level college course.]

Museum of Fine Arts, Boston, Doação de Lee Marks e John C. DePrez Jr. (2019.1893)

:: CONVINCENTE ::
Honor Jones, Sleep

Se você quisesse que a história de uma pessoa fosse convincente, crível, era assim que você fazia: você exagerava um pouco as partes ruins, mas a pior parte, a pior de todas, você a fazia parecer um pouco melhor.

[If you wanted a person’s story to be persuasive, believable, here was how you did it: you made the bad parts sound a little worse, but the worst part, the very worst part, you made that sound a little better.]


:: MELHOR E PIOR ::
Patricia Marx, “My NYC Tour of Tours

Uma enquete anual com leitores, publicada em uma edição de 1973 da revista Creem, elegeu o New York Dolls, ao mesmo tempo, como a melhor e a pior banda nova do ano.

[An annual readers’ poll in a 1973 issue of Creem named the New York Dolls both the best new group of the year and the worst new group of the year.]


:: REUNIÕES SECRETAS ::
Cida Bento, O pacto da branquitude

É evidente que os brancos não promovem reuniões secretas às cinco da manhã para definir como vão manter seus privilégios e excluir os negros. Mas é como se assim fosse: as formas de exclusão e de manutenção de privilégios nos mais diferentes tipos de instituições são similares e sistematicamente negadas ou silenciadas.


:: FATIAR UM PEPPERONI ::
James Somers, “A Revolution in How Robots Learn

A Figure, uma startup americana, angariou mais de 600 milhões de dólares para construir um elaborado robô “humanoide” com cabeça, tronco, braços, pernas e mãos com cinco dedos. Até agora, seu feito mais impressionante de destreza é “fatiar um pepperoni”, segundo Brett Adcock, fundador da Figure: o robô consegue destacar uma fatia do resto do salame.

[Figure, an American startup, has raised more than six hundred million dollars to build an elaborate “humanoid” robot with a head, a torso, arms, legs, and five-fingered hands. Its most impressive feat of dexterity so far is “singulating a pepperoni,” according to Brett Adcock, Figure’s founder: it can peel one slice from the rest of the sausage.]


:: BOLHINHAS ::
Mo Yan, Mudança

Tinha o lábio superior mais curto. Quando sorria, mostrava a gengiva roxa e os dentes amarelos separados na frente. Sua especialidade era fazer saírem bolhinhas dessa fresta entre os dentes. Uma atrás da outra. As bolhinhas flutuavam na frente dele, era uma visão fascinante.


:: URGÊNCIA ::
Amy Wilson, Happy to Help

Quando minha filha mais nova tinha cerca de quatro anos, ela uma vez escancarou a porta do chuveiro enquanto eu ainda estava com o xampu no cabelo para me perguntar, com certa urgência, o que ficava mais longe da cidade de Nova York: a Califórnia ou “o mundo inteirinho.”

[When my youngest child was about four years old, she once flung the shower door wide while I was mid-shampoo to ask me, with some urgency, which was farther from New York City: California or “the whole wide world.”]


:: VOTO DE SILÊNCIO ::
Nora Ephron, “Forget the Hamsters

É uma das coisas mais fascinantes para mim sobre todo o episódio: ele me traiu e depois agiu como se ele fosse a vítima, só porque eu escrevi sobre isso! Quer dizer, não é como se eu não fosse uma escritora. Não é como se eu nunca tivesse escrito sobre mim mesma. Eu até já havia escrito sobre ele. O que ele achava que ia acontecer? Que eu faria um voto de silêncio pela primeira vez na vida?

[It is one of the most fascinating things to me about the whole episode: he cheated on me, and then got to behave as if he was the one who had been wronged because I wrote about it! I mean, it’s not as if I wasn’t a writer. It’s not as if I hadn’t often written about myself. I’d even written about him. What did he think was going to happen? That I would take a vow of silence for the first time in my life?]

Babá negra. c1880s. Doação de Lee Marks e John C. DePrez Jr. Cortesia do Museum of Fine Arts, Boston

:: IDENTIDADE REFERÊNCIA ::
Cida Bento, O pacto da branquitude

Apesar disso, recentemente num respeitável jornal do campo progressista, uma intelectual branca se queixou do divisionismo que marcava os “movimentos identitários”, alegando que enfraquecia a luta por uma sociedade mais justa. Era possível perceber, nessa argumentação contra “movimentos identitários”, o conceito de que eram segmentos fora do território da “identidade referência”, cuja condição de branca é de universalidade e de neutralidade.


:: ARANHAS ::
Kathryn Shulz, “An Arachnophobe Pays Homage to the Spider

Essa espécie é formalmente conhecida como Megaphobema mesomelas, e, se você imaginou que a primeira parte se traduz mais ou menos como “gigante e aterrorizante”, acertou. Esse exemplar em particular tinha rastejado para dentro de minha pia vindo, presumo, das profundezas do nosso inconsciente coletivo, e parecia o resultado de uma colaboração entre Stephen King, Louise Bourgeois e Hieronymus Bosch. Emiti um som que deve ter sido audível na Guatemala, saltei para trás uns bons dois metros e me achatei contra a parede.

[That species is formally known as Megaphobema mesomelas, and if you guessed that the first part translates roughly as “gigantic and terrifying,” you’re right. This particular one had crawled into my sink from, I presume, the depths of our collective psyche, and looked like the result of a collaboration between Stephen King, Louise Bourgeois, and Hieronymus Bosch. I made a noise that must have been audible in Guatemala, leapt backward through the air a good six feet, and flattened myself against a wall.]


:: PROPORÇÃO ::
Oliver Burkeman, Help

Barbara Fredrickson diz que a proporção mais saudável entre sentimentos felizes e tristes é de 2,9 para 1.

[Barbara Fredrickson is that the healthiest ratio of happy to sad feelings is 2.9:1.]


:: DESGAVETAS ::
Caitlin Moran, How To Be a Woman

“Prevertido” é a nossa nova palavra. Todas nós lemos bastante — mas também, possivelmente, rápido demais. Há pouco, começamos a usar a palavra “paradigma”, pronunciada exatamente como se escreve. O autodidatismo tem suas desvantagens. Ou desgavetas, como provavelmente teríamos lido correndo e jamais sido corrigidas.

[‘Prevert’ is our new word. We all read a great deal — but also, possibly, too quickly. We have also recently taken to using the word ‘paradigm’, pronounced as spelt. Autodidactism has its drawbacks. Or backdrawers, as we would probably have speed-read, and never been corrected.]


:: THE REALLY ::

Honor Jones, Sleep

Ezra era editor-chefe da The Really, que ele descrevia como uma pequena revista digital de tecnologia, embora, na verdade, fosse publicada por um braço do departamento de relações públicas da empresa de mídia social mais poderosa do mundo. Em seus sete anos de atuação, a revista passou por vários nomes: IkonAriaInterrobang. Ele parecia passar a maior parte do tempo em reuniões para criar novos nomes, ou em reuniões sobre as melhores práticas para futuras reuniões de brainstorming de novos nomes, ou ainda em reuniões para discutir a demografia dessas futuras reuniões e como garantir que todos participassem igualmente no importante trabalho de criar novos nomes. De vez em quando, ele trabalhava em um infográfico sobre desinformação.

[Ezra was a managing editor at The Really, which he described as a small, tech-focused digital magazine, though in fact it was published by a branch of the PR department of the world’s most powerful social media company. In his seven-year tenure , the magazine had cycled through many names: Ikon, Aria, Interrobang. He seemed to spend most of his time in meetings brainstorming new names, or in meetings about best practices for future meetings for brainstorming new names, or in meetings to discuss the demographics of those future meetings and how to ensure that everyone participated equally in the important work of brainstorming new names. Occasionally he worked on an infographic about disinformation.]


:: DIÁRIO DE CAMPO ::
Cenas extras de Três Camadas de Noite

Quando descemos do táxi, Heitor ficou encarando um homem na rua por um longo tempo e, depois que ele estava bem longe, perguntou: “Por que ele tem um cabeção?”.


:: PEIXE MORTO ::
S. Morris Engel, Fallacies and Pitfalls of Language

Conta-se que, certa vez, o rei Charles II da Inglaterra pediu aos membros da Royal Society que descobrissem por que, ao botar um peixe morto em uma tigela cheia de água, a água transborda, enquanto isso não acontece com um peixe vivo. Alguns dos membros refletiram longamente sobre a questão e apresentaram explicações engenhosas, mas pouco convincentes. Finalmente, um deles decidiu testar a hipótese. Descobriu, é claro, que não fazia a menor diferença colocar um peixe morto ou vivo na tigela de água.

[It is told of King Charles II of England that he once asked members of the Royal Society to determine why, if you place a dead fish in a bowl full of water, it makes the water overflow, while a live one does not. Some of the members thought about this a very long time and offered ingenious but unconvincing explanations. Finally, one of them decided to test the question. He discovered, of course, that it did not make a bit of difference whether one placed a dead fish or a live one in a bowl of water.]


:: GATOS ::
Encyclopaedia Britannica, 1st edition, “Cats

Eles bebem com frequência; seu sono é leve; e muitas vezes aparentam estar dormindo, quando na verdade estão maquinando alguma maldade.

[They drink frequently; their sleep is light; and they often assume the appearance of sleeping, when in reality they are meditating mischief.]

Abominável Mãe Oculta das Neves, Original Fowler Studio, sem data.

>>>>
Agradecimentos: À pessoa que me mandou o trecho do Mo Yan e eu esqueci quem foi.
Esta edição foi possível graças a 22 aguerridos assinantes!

Os links dos livros são afiliados da Amazon e me ajudam a recarregar o Bilhete Único.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A.)

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.