Contém: tolice exacerbada

Postado em: 1st dezembro 2016 por Vanessa Barbara em Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo

O Estado de São Paulo – Caderno 2
28 de novembro de 2016

por Vanessa Barbara

Na semana passada falei do meu apreço pelas videolocadoras, mas esqueci de mencionar um de meus passatempos favoritos nesses locais: o de espiar a contracapa dos DVDs e apreciar as linhas miúdas da classificação indicativa dos filmes. Junto com a faixa etária, há sempre dois itens muito proveitosos: a descrição do tema e do conteúdo.

Por exemplo: o tema de Gremlins (1984) é “estranhas criaturas que se transformam em seres diabólicos”. O do musical My Fair Lady (1964), com Audrey Hepburn, é “ascensão social”. Sobre A Viagem (2012), o tema é “experiência de vida”, e o de O Exterminador do Futuro (quadrilogia), é “sobrevivência da raça humana”. Dá para ficar imaginando que tipo de drogas estava consumindo o responsável pela classificação. Sobre o filme de Billy Wilder O Pecado Mora ao Lado (1955), o mote é “desejo reprimido”, e o de Piratas do Caribe (2003) é “caça ao tesouro”. Alguns são bem diretos: o filme soviético A mãe (1989) fala de “luta de classes”.

O tema de Império dos Sonhos (2006) é “conflito de identidade”, e a fita contém “exposição de cadáveres”. A inocente série Gilmore Girls (2000) inclui “conflitos”, e o filme Todos os Homens do Presidente (1976) contém “desvirtuamento moderado dos valores éticos”.

Já a série Prison Break (2005) traz o tema “fuga” e uma enormidade de advertências de conteúdo: “assassinato, tortura, mutilação, suicídio, enforcamento, sequestro, agressão física, agressão verbal, ocultação de cadáver, apologia a drogas, linguagem obscena, insinuação de sexo, erotismo, carícias, assédio sexual a menor, consumo de álcool por adulto”. (Destaque para “carícias”.)

Confesso que não entendi por que o tema de O Jogo da Imitação (2015), um filme sobre a saga do matemático britânico Alan Turing para decifrar a chave da criptografia nazista, é simplesmente “terror”. Mas acho graça de que Tarzan e as Sereias (1948) é sobre “contrabando”, e que O Rei da Polícia Montada (1940) é sobre “luta contra o mal”.

Só não sei se foi uma boa ideia estabelecer “viagem no tempo” como tema de O Planeta dos Macacos (1968), mas quem sou eu para reclamar de spoilers.

A despeito de meu monumental desprezo pelo catálogo da Netflix, também é possível se divertir moderadamente com a advertência de certos filmes – não são todos que trazem tal informação. Manhattan (1979) contém “conflitos psicológicos atenuados”, e Gandhi (1982), vejam só, tem “agressão física e homicídio”. Vários possuem “tema impróprio”, como o faroeste Por uns Dólares a Mais (1965) e Wall Street: Poder e Cobiça (1987).

Quentin Tarantino é só diversão na área de advertências: Bastardos Inglórios (2009) tem “homicídio, crueldade, mutilação”, Django Livre (2012) contém violência extrema, Cães de Aluguel (1992) apresenta “violência pesada, linguagem imprópria”.

Uma das características da Netflix é a descrição kitsch do teor de seus filmes, bem própria de uma empresa que usa algoritmos para identificar o gosto dos usuários e até para produzir novos conteúdos. O site não só descreve o gênero da fita, mas determina o espírito das cenas, que podem ser: inspiradoras, emocionantes, empolgantes, alto-astral, espirituosas, românticas, irreverentes, despretensiosas, provocativas, arrepiantes e visionárias.

Annie Hall (1977) tem cenas e momentos “pouco convencionais, complexos”, ao passo que em StarWars (1977) eles são “criativos”. No caso de Assassinos por Natureza (1994), são “controversos”. O espectador em busca de emoções prontas pode, por exemplo, clicar em Pulp Fiction (1994) e obter cenas “empolgantes, tensas, filmes excêntricos”. (?) Fico imaginando que derrota para o cinema é ter um usuário decidindo que hoje é dia de assistir a um “filme para chorar”.

Mas meu tema favorito está na contracapa do DVD de O Discreto Charme da Burguesia (1972): é “jantar surreal”.