A Hortaliça

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Por mil demônios!
Edição #022, de 16 de junho de 2002.
Para os que têm medo da palavra véu.
Tiragem: 213 exemplares
Consulte-nos agora mesmo sobre seus problemas avícolas.

hortalica@gmail.com

 

"Eu só poderia crer num deus que pudesse dançar, confessou o Nietzsche à minha vizinha Lurdes.
Que, sinceramente, não estava nem aí praquele velho louco."

 

EDITORIAL ou LENTES DE CONTATO
 

Gostava de usar óculos: contemplava o mundo dentro de uma apática e geométrica moldura. Tinha o que os jornalistas chamam de distanciamento crítico, obtido em 4 anos de terapia universitária, um aro escuro quadrado, lentes grossas e certa dose de muxoxo. Quando acontecia algo nas redondezas, digamos, um senhor grisalho punha-se a disputar a posse do último pacote de goiabinhas com uma criança ruiva, e entupia-lhe as vias respiratórias com sua indiscutível boina - bom, o Orestes ia lá espiar. Sentava-se no meio fio, com as calças curtas deixando aparecer as meias, e ficava piscando ambos os olhos sem parar (ao mesmo tempo, observe), entretido com a cena vista pelos aros pretos. Alguns populares sempre tentavam intervir, dando cabeçadas na testa do senhor grisalho ou entupindo seu nariz de estôpa, mas as coisas nunca davam lá muito certo e geralmente a garota acabaria por gastar uma fortuna com conjuntinhos pretos de veludo, sete anos depois. Ou viraria psicóloga, ou faria abdominais, ou moraria com um publicitário - ainda poderia tentar a política, a meditação ou os sapatos de salto agulha.

Orestes, no entanto, era a personificação do contentamento. Pacato, mastigava goiabinhas e piscava lentamente de quando em quando, para lubrificar o mundo de sal e água. Dentro de pouco tempo a balbúrdia acabaria, com a chegada da ambulância ou do xerife, quando uma trilha sonora tomaria a cena; finalmente Orestes compraria seu costumeiro pão de batata e iria embora. Na esquina da Eulália com a Bonifácio ele tiraria delicadamente os óculos para poli-los em seu pulôver e depois recolocá-los com empáfia e disposição. Orestes gostaria que os créditos e o The End subissem naquele momento, concluindo o delirante filme de sua rotina, mas o diretor daquela produção pestífera também usava óculos de aros escuros e não concordava com isso, não senhor.

Limpava as lentes na gola rolê de sua malha felpuda, Orestes, mas não chegou a recolocá-las. (o garoto sonolento se apruma na poltrona - êpa!) ...Uma descomunal e enferrujada placa de cobre despenca, esbugalhadamente, em cima do tornozelo de Orestes, fazendo voar seus óculos e pares de batatas. Desesperado, não consegue olhar para cima sem a ajuda limitante da moldura ocular da Ray Ban Executive, e tenta pedir socorro com os olhos fechados. Mas odiava aquela escuridão infinita, as partículas de sujeira boiando dentro da pupila, as bolhas prateadas dançando - diabos, ali dentro era muito imenso. Abriu os olhos, e agradeceu aos céus por não ter uma visão panorâmica de pássaro.

Mesmo assim enxergava, e o que via era dezenas de executivos do Stand Center em hora de almoço, mascando pedaços de carne mal passada, e mais acima de sua visão enorme estava a garotinha ruiva no alto de um muro, contente por ter empurrado um andaime de cobre ladeira abaixo e tornozelo acima de Orestes. Que soterrava-se cada vez mais embaixo da maldita placa, engolidora de calcanhares, canelas, joelhos, cartões de visita, conjuntinhos pretos e passados longínquos. Os garotos do Stand Center mastigavam, e um deles (o diretor adora aparecer) usava óculos de aros pretos. Estavam satisfeitos.

A placa de cobre foi removida apenas dezesseis minutos e treze segundos depois, por um cão salsichinha que adorava pães de batata. Negociaram, e Orestes pôde apalpar os pés à procura de fraturas insuportáveis, mas no lugar de seus dedos havia apenas uma pata de bode. Bem. O diretor arranjou outro emprego no Stand Center para o interessante roteirista, e Orestes recuperou seu par de pés para não ter problemas com a censura. Voltou para casa sem os óculos, sem o pão de batatas mas com um cachorro apressadinho, com quem tocou a passear todos os dias pela alameda Bonifácio, de moletom e tênis. O compridinho amigo libertou Orestes de seus óculos, honrando assim suas aptidões invejáveis de cão-guia - fora cicerone em uma empresa de turismo, e mostrava aos míopes as coisas interessantes ao redor das janelas do mundo. Ensinava os cegos a olharem para os lados, diria seu assessor de imprensa. Orestes tingiu o cabelo de ruivo e distribuiu goiabinhas Piraquê para associações não-governamentais; ria como uma Meg Ryan e sapateava - ah, como sapateava. Nos fins de semana, adentrava o edificante mundo das baladas, onde revirava os olhos e pulava como um sapinho bobo.

O cão salsicha achou tudo aquilo terrível e arranjou uma infecção na nuca para não sair mais com o Orestes. Alojou-se, enfermo, em sua casinha de lajotas azuis, e olhava os bueiros da rua pela moldura estática da maldita janela. Tão jornalístico. Optou pelo suicídio, lento e demorado: quando Orestes saiu para dançar, num ensolarado domingo, o Compridinho cão olhou pela janela tragicamente, piscou algumas vezes e, desconsolado, colocou no rosto os malditos óculos.


:: VERSINHOS::
por Antonio Maria, antonio@catalupos.cjb.net

Ninguém me ama
Ninguém me quer
Ninguém me chama
De Baudelaire.

:: AGONIA ::
por Vinícius de Moraes (é da família! é parente!)

No teu grande corpo branco depois eu fiquei.
Tinhas os olhos lívidos e tive medo.
Já não havia sombra em ti - eras como um grande deserto de areia
Onde eu houvesse tombado após uma longa caminhada sem noites.
Na minha angústia eu buscava a paisagem calma
Que me havias dado tanto tempo
Mas tudo era estéril e monstruoso e sem vida
E teus seios eram dunas desfeitas pelo vendaval que passara.
Eu estremecia agonizando e procurava me erguer
Mas teu ventre era como areia movediça para os meus dedos
Procurei ficar imóvel e orar, mas fui me afogando em ti mesma
Desaparecendo no teu ser disperso que se contraía como a voragem.

Depois foi o sono, o escuro, a morte.
Quando despertei era claro e eu tinha brotado novamente
Vinha cheio de pavor de tuas entranhas.


:: ITÁLICO ::
por Alisson Villa, bucolico@hotmail.com

As palavras em itálico são inclinadas por reverência, tristeza ou desvio na coluna?

:: JANELAS ::
por João Cabral de Melo Neto, neto@emcrise.com.br

Há um homem sonhando
numa praia; um outro
que nunca sabe as datas;
há um homem fugindo
de uma árvore; outro que perdeu
seu barco ou seu chapéu;
há um homem que é soldado;
outro que faz de avião;
outro que vai esquecendo
sua hora seu mistério
seu medo da palavra véu;
e em forma de navio
há ainda um que adormeceu.


:: CTRL C + CTRL V ::
por Sérgio Augusto, na revista Bravo.

Mamihlapinatapei: de um idioma indígena da Terra do Fogo, quer dizer o "ato de olhar nos olhos do outro, na esperança de que o outro inicie o que ambos desejam mas nenhum tem coragem de começar".


:: DOIS ESTUDOS ::
por João Cabral de Melo Neto

I
Tu és a antecipação
do último filme que assistirei.
Fazes calar os astros,
os rádios e as multidões na praça pública.
Eu te assisto imóvel e indiferente.
A cada momento tu te voltas
e lanças no meu encalço
máquinas monstruosas que envenenam reservatórios
sobre os quais ganhaste um domínio de morte.
Trazes encerradas entre os dedos
reservas formidáveis de dinamite
e de fatos diversos.

2
Tu não representas as 24 horas de um dia,
os fatos diversos,
o livro e o jornal
que leio neste momento.
Tu os completas e os transcendes.
Tu és absolutamente revolucionária e criminosa,
porque sob teu manto
e sob os pássaros de teu chapéu
desconheço a minha rua,
o meu amigo e o meu cavalo de sela.


:: SE MEU GUARDA-CHUVA FALASSE ::
Da Redação (que gostaria de ser banhada a ouro, por este feito).

Eu estava quieta, absolutamente imóvel, sem mesmo respirar - me punha a cronometrar quanto tempo conseguia ficar estática. Meus pés estavam presos em alguma estrutura de ferro convenientemente disposta abaixo do banco do cobrador, que me olhava com o canto dos olhos e lia Vencer É Possível ou os Segredos das Famílias Felizes. Segundos depois, ainda imersa em uma modorrice voluntária, eu dava um grande susto em mim mesma (já tentou?) e zerava o contador do relógio. Dois minutos e trinta segundos. O ônibus praticamente não tinha saído do lugar, e nem o livro que estava no meu colo. Fui encostar a cabeça no vidro e passou uma lombada (teoria 1: dormir no ônibus causa lesões irreversíveis em partes fundamentais do cérebro). Coloco a cabeça pra trás, pra frente, pros lados, afofo a área com uma blusa, deito em cima da mochila, do joelho, do tédio. Largo as coisas no canto e esboço uma reação de revolta, quando ouço algo:
- Ôu.

Tento procurar quem está me chamando. O cobrador cochila sob um montinho de passes. Ninguém à frente, atrás apenas um moço de walkman, embaixo as rodas, acima as nuvens. O motorista brincava de Enduro.

- Ué?
- Aqui. Aqui embaixo, ôu.
- Mochila? Desde quando a minha mochila fala?
- Bolsas não falam. O que dizer então desse trapo velho. Você não faz nada direito, não dá valor a nada. Aposto que deve estar bocejando.

Olho feio, mas não sei pra quem. Tomo a mochila nas mãos e vejam só: o guarda-chuva está falando comigo. Eu já devia imaginar, estava a bordo do 701-U e essas coisas acontecem.

- Cara. - ele pragueja - Me tire logo deste saco plástico. Se você fosse o Cortázar, eu estaria agora sentado num banco de ônibus, e você estaria lutando contra a asfixia de um saco do Carrefour.
- Reclama, que te coloco numa sacola do Bergamini. E você vai ter que ler inscrições tipo "O Senhor é meu pastor, capim não me faltará”. Quieto!
- Olha que eu me abro aqui mesmo, com todas as varetas escancaradas, bem no seu olho.
- Experimenta!
- Nunca duvide de uma sombrinha.
- Bem que eu podia ter olhado pra você antes de te comprar. O vendedor tinha nariz de batata, eu devia saber.
- Cala a boca e agora leia pra mim.
- Estou perdida na próxima chuva... pobre de mim!
- Leia!
- Terei que proteger um guarda-chuva falante dentro da minha jaqueta, que patético...
- Abre o livro! Leia!!
- ... "Eu queria um castelo sangrento", disse o comensal gordo...

:: QUE ESTÁ ACONTECENDO NA TURQUIA? ::
a Reader's Digest dá o tom, nós completamos as matérias.

Deve ser do caramba o carnaval na Turquia. Duas grandes caixas acústicas gritam marchinhas horríveis, do topo dos Enclaves Rupestres da Capadócia, para desespero dos coitados do lado esquerdo (Tuvalu) ou do lado direito (Turcomênia). Aposto que eles têm cornetas, os turcos. Aposto que lá é carnaval o ano todo.

- E os gritos, moço? Que são esses urros de dor?
- Escandalosos, os muçulmanos: não sabem dançar discretos.

:: CORRESPONDÊNCIA ::
e-mails reais, bisonhos e suspeitíssimos, interceptados por uma inocente lupa.

Olifante,
Josias,
egrégia banca,
garotas do cha-cha-cha.
Congestionamento nas principais avenidas. Coca-cola 2 litros a 90 centavos no Barateiro. Sim, eu sei.

:: VOCÊ PERGUNTA, NÓS NÃO DAMOS A MÍNIMA ::
Questionamentos sadios de uma sociedade doente.

??? Como posso entrar em contato com a Corporação? (Paul Mito, SP)

 


EXPEDIENTE

Este Zine é impessoal. Computadores meticulosamente programados desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão neutra e imparcial da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".

... Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado (que vem logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido) - Stephanie A.

Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque (oinc!) estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@brfree.com.br, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". Se quiser que mais vítimas recebam o Zine, também escreva para esse e-mail mandando o endereço dos condenados e o número e senha de suas contas bancárias. Se quiser usar cartão de crédito, basta fornecer o número.

!!DAMN!! Zine - o zine das coisas que foram, das coisas que são o que são, das que não são o que não são e das que poderiam vir a ser o que não foram. Perfeito para forrar o chão de barracas fajutas e para embrulhar mortadela. Parceiro do tablóide norte-americano "O Sol da Meia Noite", mas não olhe pra trás porque tem um fauno fritando ervilhas nas suas omoplatas.

"Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe".


God is coming.
Look busy.



2005 Vanessa Barbara