A Hortaliça

www.hortifruti.org

Por mil demônios
Edição #020', de 14 de junho de 2002.
Para os que assopram velas repetidamente...
Consulte-nos agora mesmo sobre seus problemas avícolas.

hortalica@gmail.com
Edição especial número 20-linha (Dia do Catalupo)

 

"Eu declaro que todas as sapatarias de Amsterdã são obras de arte"
(anônimo)

 

EDITORIAL
 

João F. dos Passos era um homem cheio de picles e pantufas, definitivamente exultante às 4 da tarde de um sonso domingo. À sua volta também enrodilhava-se um gato persa, um puff, dois filhos pequenos e um reluzente controle remoto universal (já oleoso), com botões coloridos e três baterias alcalinas. João dos Passos era mesmo um homem feliz.

Especialmente naquele domingo insípido, a tigela de vidro com salsichas e azeitonas anunciava uma partida de futebol importante na televisão – é importante registrar, inclusive, que o telefone estava solenemente fora do gancho, para evitar inoportunas distrações e surpresas desnecessárias. João dos Passos mastigava as bochechas com satisfação e salsichas.

Logo depois do almoço – macarrão, quibe e um bocado de aspargos –, o homem tinha se despedido de seus filhos com um sonoro "se eu voltar aqui à noite e essa bagunça toda estiver no quarto, alguém vai pagar!", tomou uma ducha, vestiu suas meias e penteou o cabelo. Na sala restava um grande lugar vago, a televisão apagada, o tapete fora do lugar e um Corinthians x Juventus prestes a começar. Ele se sentou, suspirou, ajeitou o par de pés no puff rosado. À noite ainda ia ter filme dublado, pensava, tentando prontamente repudiar a satisfação em demasia.

João dos Passos inclinava a cabeça levemente para a esquerda, e olhava fixo para além do horizonte televisivo (ainda faltavam dois minutos). A Esposa, com suas manias metódicas e cabelos encaracolados, passava os domingos na cozinha, a cortar as unhas dos pés de maneira geométrica. Os dois filhos, um loiro e o outro teimoso, não se sabia onde passavam os domingos. Muitas vezes algum brinquedo mortalmente cortante desabava do décimo andar bem direto na cabeça de algum morador antigo, mas os Passos nunca ficavam sabendo porque o telefone dava sempre ocupado – os gêmeos se orgulhavam bastante da pontaria certeira a que foram predestinados (era genético! Um dom divino!). Não gostavam de futebol, mas João dos Passos suspirava baixinho quando o Timão pisou o gramado.

Aos quatro minutos do primeiro tempo, quando o loiro tentava fazer com que uma tesoura alemã despencasse na cabeça da senhora do 312, a campainha tocou. A esposa estava concentrada em seu próprio dedo mindinho e não escutou; os garotos tomaram um susto e fingiram que estavam adormecidos; restou a João F. dos Passos mover levemente o nariz, em sinal de descontentamento. Novamente a campainha, e nenhuma reação drástica dentro do apartamento. Alguns muxoxos do quarto das crianças. Agora o cidadão lá fora tentava esmurrar a porta com uma força descomunal, aos berros, mas foi solenemente ignorado durante 3 minutos (o Corinthians estava dentro da área, vejam só! Que passe bonito!) e desistiu. João dos Passos tossia e remexia-se no puff.

Aos vinte e dois minutos do primeiro tempo, pela janela frontal do andar de João dos Passos, surge – estrondosa e apoteoticamente – uma gigantesca bola de ferro, do tamanho de um zepelim, a engolir concreto e crianças. Dezoito apartamentos são tragados pela massa de poeira e cimento, a cozinha do recinto é deformada com teimosia, a esposa Passos voa por seiscentos metros ao ar, segurando um alicate de unhas, e o quarto dos gêmeos vira pó. Os vizinhos choravam, na calçada, curiosos arregalavam os olhos, as equipes dos jornais já estavam a caminho. João dos Passos, meio chateado, teve muitos problemas para conseguir sintonizar a tevê de novo.

- ooo -

Ou então : a Revolução Chinesa finalmente chega ao apartamento, arromba a porta, seqüestra as crianças (você sabe, os comunistas...), crava a tesourinha de unha na jugular da Esposa e encontra João F. dos Passos catártico, com os olhos fixos no escanteio. Li-Ling, o líder da rebelião, destrói a tevê com oito golpes violentos, incendeia o puff, joga os móveis pela janela do apartamento e urra bastante. João dos Passos, ainda no sofá, continua encarando o horizonte com um certo sorriso enigmático, levanta calmamente e vai à cozinha fritar cebolas.


:: SEQÜÊNCIA ::

No alcorão não há camelos.
(Jorge Luis Borges)


:: EXCLUSIVAMENTE POR CAUSA DA DESORDEM CRESCENTE ::
por Bertolt Brecht, nosso adorável colunista

Exclusivamente por causa da desordem crescente
Em nossas cidades de luta de classes
Alguns de nós decidiram agora
Não mais falar de cidades à beira-mar, neve nos telhados, mulheres
Cheiro de maçãs maduras na dispensa, as sensações da carne
Tudo aquilo que torna um homem redondo e humano
Mas sim falar apenas da desordem
E assim tornar-se parcial, restrito, enredado nos negócios
Da política e no vocabulário "indigno" e seco
Da economia dialética
Para que essa coexistência terrível, compacta
De quedas de neve (não é apenas fria, sabemos)
Exploração, carne seduzida, justiça de classe
Não produza em nós aprovação
De um mundo tão múltiplo, prazer
Nas contradições de uma vida tão sangrenta
Vocês compreendem.


:: DIÁLOGO INTERESSANTE ::

HEMINGWAY: Eu sou um velho estranho.
MACDONALD: Pois não diga, meu velho, prove!

:: A FLOR E A NÁUSEA ::
por Carlos Drummond de Andrade

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar esse tédio sobre a cidade.


:: SÓ PODERIA CRER ::
por F. Nietzsche

Eu só poderia crer num deus que pudesse dançar. E quando vi o meu demônio e o encontrei sério, rigoroso, profundo, e solene: era o espírito da gravidade - através dele todas as coisas caem. Não se mata por meio do ódio mas por meio do riso. Venham, matemos o espírito da gravidade!


:: UMA RIMA NO MEU POEMA ::
por Bertolt Brecht

Uma rima no meu poema
Me daria quase a impressão de uma insolência,
Em mim se enfrentam
A exaltação quando vejo a macieira em flor
E o horror que me causam os discursos do pintor de paredes.
Mas somente o horror
Me faz escrever.


:: SEQÜÊNCIA - 2 ::

Se houvesse alguma dúvida sobre a autenticidade do Alcorão, bastaria essa ausência de camelos para provar que ele é árabe.
(Jorge Luis Borges)

:: DIÁLOGO DE LESMAS ::
por Alisson Villa

- Oi, lesma
- Oi.


:: OS TRÊS MAL-AMADOS ::
por João Cabral de Melo Neto, em www.releituras.com

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


:: SEQÜÊNCIA - 3 ::

...Maomé estava tranqüilo: sabia que podia ser árabe sem camelos.
(Jorge Luis Borges)

:: NÃO HÁ MAIS MOTORISTAS COMO OS DE OUTRORA ::
a Reader's Digest dá o tom, nós completamos as matérias.

A franja estava revolta e ululava ao sabor do vento. O cara se orgulhava de começar um parágrafo assim, inspirado pelo vigoroso sopro da vida, e também por uma motocicleta possante prateada, propriedade daquele tipo de sujeito que nunca a chamaria de "motocicleta" – daria um apelido qualquer pra ela. Acelerando mais um pouco (cento e dez, cento e vinte), ele viraria um asterisco ou uma rampa de lançamento de mosquitos. O vento modelaria um ótimo moicano, também. E transformaria seus olhos em amendoadas pupilas chinesas, antes que algum cisco vítreo venha se alojar no canal lacrimal e aí teremos outra história melodramática na próxima edição. Durante milésimos de segundo ele entraria em uma dimensão paralela, onde moram os guarda-chuvas ultrassônicos. Mas o que importa, agora, é que ele era um cara daqueles.

Bom, mas trata-se de uma revista estranha, que não pode deixar o leitor sonolento ronronar diante dessa imagem marlbôrica, mas que também não pode inventar um caubói a essa altura da história para enlaçar o cara, arrancando-o da motocicleta Atalaia (é esse o nome dela) e salvando-o de ser atingido por uma pesadíssima vaca paisagista, que caía do céu vertiginosamente com as quatro patas bastante abertas. Bom, issó nós não podemos fazer (desculpe).

Também não podemos providenciar que o galanteador Jimmy, dono de uma fábrica de molhos enlatados, empunhe uma espada de lâmina de aço e grite: "Amada minha gentil que te partiste, tão cedo desta vida descontente", cometendo harakiri em cima de sua Atalaia apenas porque era um abobado sofredor romântico. Acontece, mas não aqui. O que se deve fazer é inserir um cachorrinho na trama (daqueles meio sem olhos, cheio de pêlos brancos saltitantes e coleirinhas douradas), isso mesmo, inserir um pobre animalzinho dócil na história, cruzando a Route 66 para fazer xixi justamente quando Jimmy e Atalaia passeiam pela estrada. Podemos desenhar reconstituições alegres, mostrando o cãozinho Biscoito a voar seiscentos metros à frente, ganindo em inglês, e a última foto da página pode ser um close da coleirinha dourada, tristemente em abandono no pé do acostamento. A matéria seguinte, que fique bem claro, tratará de filosofia canina e vida após a morte. Depois o Mascarenhas Filho edita a seção de Piadas.


:: CORRESPONDÊNCIA ::
e-mails reais, bisonhos e suspeitíssimos, interceptados por uma inocente lupa.

História boba: A barata de G.H. se encontra com a barata Gregor (que, como sempre, passava por uma crise terrível de classificação coleóptera), e ambas começam a conversar sobre doenças intestinais. Depois de algum tempo, obviamente, os assuntos irrelevantes ficam cada vez mais raros, e elas passam (de maneira compulsiva) a fazer sonetos de amor lindíssimos, por estarem perdidas, loucas e irremediavelmente apaixonadas pelo pacato senhor Cipriano Barata.

- ooo -

É, eu sei, uma história tão bonita que vou ter que dar um intervalo para os comerciais.

- ooo -

Não diga velhice: diga Eternil.

- ooo -

Eu só poderia crer num deus que pudesse dançar, confessou o Nietzsche à minha vizinha Lurdes. Que, sinceramente, não estava nem aí praquele velho louco.

- ooo -

Observação passageira: os três asteriscos equivalem a uma família de reticências, que acordou de madrugada, apressada para ir trabalhar na mina de carvão, e esqueceu de passar gel mentolado no cabelo. Nota do Editor: nesta passagem, a autora demonstra ter atingido um grau bastante considerável de insanidade, já que as pessoas que acordam de madrugada para trabalhar na mina dificilmente teriam questões capilares com que se preocupar. Réplica da autora: o que não desqualifica a idéia de seus cabelos estarem terrivelmente revoltos. Ganhei.


:: VOCÊ PERGUNTA, NÓS NÃO DAMOS A MÍNIMA ::
Questionamentos sadios de uma sociedade doente.

??? Quando é, exatamente, a maldita hora da noite em que tudo é engraçado - que vem logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido? (Paul Mito, SP)

Depende da conjunção dos astros e da disposição dos satélites na órbita plutônica. A Stephanie, nossa taróloga profissional especializada em búzios, sapateado e vudu, elabora semanalmente acuradíssimos mapas astrológicos para delimitar qual é o momento mágico em que isso acontece. Baseado nesses estudos científicos é que é construída a periodicidade do Zine: não, nunca foi aleatório; que é isso, nós não fazemos quando dá na telha. Agora, por exemplo, é uma daquelas horas mágicas, do contrário você não estaria lendo isso aqui ainda.


EXPEDIENTE

Este Zine é impessoal. Computadores meticulosamente programados desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão neutra e imparcial da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".


... Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado (que vem logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido) - Stephanie A.

Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque (oinc!) estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@brfree.com.br, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". Se quiser que mais vítimas recebam o Zine, também escreva para esse e-mail mandando o endereço dos condenados e o número e senha de suas contas bancárias. Se quiser usar cartão de crédito, basta fornecer o número.

!!DAMN!! Zine - o zine das coisas que foram, das coisas que são o que são, das que não são o que não são e das que poderiam vir a ser o que não foram. Perfeito para forrar o chão de barracas fajutas e para embrulhar mortadela. Parceiro do tablóide norte-americano "O Sol da Meia Noite", mas não olhe pra trás porque tem um fauno fritando ervilhas nas suas omoplatas.

"Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe".
atenção: as figuras desta edição fartamente ilustrada são vistas apenas se seu email estiver configurado para receber em html. Tome vergonha!


God is coming.
Look busy.



2005 Vanessa Barbara