A Hortaliça

www.hortifruti.org

Por mil demônios!
Edição #015, de 21 de abril de 2002.
Para aqueles que seguem vagarosos
Classificação: impulsivo e inconseqüente

hortalica@gmail.com
Passe para 12 pessoas, senão a Morte Rasteira virá roer as unhas de seus pés.

 

"É melhor dormir em meio às vacas
que em meio às suas etiquetas e respeitabilidades"
(F. Nietzsche)

 

EDITORIAL
Vanessa Barbara
 

Ele acordou e havia capim ao redor. Olhou para o relógio, ainda dava tempo de ir pro inglês. Depois era preciso passar no bronzeamento artificial. E no escritório. E na fisioterapia, na hidroginástica, no consultório dentário, no bandeirante, na terapia, no karatê. Sua vida era repleta de substantivos, tão vagos quanto seus dedões do pé, que moviam-se lentamente sob um torpor engraçado. Dezesseis e cinqüenta e quatro: passar na Helenilde, que era a moça do Xerox. Ele se levanta, resoluto, e subitamente lembra que havia capim - capim - ao redor. Caramba. O que estou fazendo de paletó e meias, em cima de um monte de feno, cercado de vacas sorridentes?? (N. E.: Churrasco?) O relógio marcava dezesseis e cinqüenta e quatro, e Helenilde estaria prestes a fechar a loja, mas que diabos, malditas vacas, saiam daqui.

Barrado pelos moos ameaçadores das malhadas criaturinhas, ele resolve sentar e refletir um pouco. O que meu livro de Otimismo em Gotas diria, nesse momento? Revolvendo os bolsos, encontra o celular azul, oleoso e barulhento, que tem agora um talo de brócolis no lugar da antena (estranho). No visor, ao invés de "B O M D I A", há um sarcástico "H I H I H I H...", e o que se escuta ao encostar o ouvido é "Bem vindo à Caixa Postal Telefônica. Tecle os primeiros dígitos do DDD da sua cidade mais o núm..". Pombas. Minha agenda, vou procurar minha agenda. A secretária Rose, a secretária Isabela, Hilde ou Olegária sempre coloca lembretes importantes que podem me orientar. Taí: 21 de abril. Inglês, escritório, bronzeamento, fisioterapia, juízo final, bandeirante. Juízo Final? Por que a vaca me olha de um jeito estranho? Bom, eu tenho minha consciência limpa. Nunca fiz nada contra a Corporação, aliás nem sei que ela existe. Joguei no triturador de lixo aquela folha de estanho (ridícula) que o Nicanor me deu de presente. O que podem fazer contra mim? Sou apenas um substantivo ambulante, modorrento, apático e aborrecido, esperando a hora de ir pro Inglês. Nada, eu nunca fiz nada.


:: A MÁQUINA DO MUNDO ::
Carlos Drummond de Andrade

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo."
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.


:: BU-BA-BAFF! ::
pensamento anônimo

Fez duas operações: uma na França e outra no ouvido.


:: A NOVA SINTAXE ::
por Johannes Becher, 1918, jbecher@mordviertdel-zyklopenstädte.com.au

As bengálicas borboletas adjetivas
Circundam em seu canto o substantivo de sublimes e rígidas estruturas.

Um particípio-ponte vai vibrar, vibrar!!
Enquanto o sagaz verbo, sonante aeroplano, se enrosca nas alturas.

Dança de artigos mexe graciosa balançantes perninhas.
Em ritmo de risadinhas agita-se uma platéia.
Mas então salta do trapézio, metálica,
Uma estrofe pura. A cadeira

Das lamparinas de rua despedaça-se.
Apesar daquela colorida dama de sagrado vocativo.
Um jovem poeta sujeitos cimenta.
Perfura o túnel do objeto... O imperativo

Eleva-se rapidamente, varrendo fantásticas paisagens de frases.
Sopra sete tubas de Hidra. Caem as nuvens.
E escorre o azul. Enérgicas montanhas avançam.
Assim desabrochamos no brilho de um sobremundo de luz de maio.


:: READER'S DIGEST ::
a Reader's Digest dá o tom, nós completamos as matérias.

"São Paulo, 19 de abril de 2002.
Caro editor do DamnZine,

Meu nome é Silas, tenho 32 anos, 1,78m de altura, 68 quilos, olhos castanhos, testa estreita, sou católico, sentimental e a favor da democracia. Gosto de poesia expressionista alemã. Recebi o Zine sem pedir por ele, em uma tarde de abril, e fiquei estupefato com uma das seções que vocês teimam em manter toda semana. Aquela dos títulos. Sou redator-júnior da Seleções do Reader's Digest, onde trabalho há mais de quarenta anos, e minhas atribuições na Revista são, respectivamente: trocar as lâmpadas, polir janelas, contar piadas, tossir, declamar poemas e elaborar bons títulos. Sim, sou eu o Homem dos Títulos. E fiquei bastante magoado com sua momice às minhas reportagens investigativas sobre a Lontra, o fêmur de João, a circulação linfática e tantos outros assuntos de relevância Nacional, e, por que não?, humana. Gostaria de saber para onde mando meu currículo."

DZ responde: Praça Tito, s/n - cep: 02419-010. Mas vc já está contratado. E sim, nós também amamos você.


:: QUE VENHAM AS VACAS ::
por Friedrich Nietzsche, o dos bigodes

Mudei-me para a casa dos eruditos e bati a porta ao sair. Por muito tempo, a minha alma assentou faminta à sua mesa. Não sou como eles, treinados a buscar o conhecimento como especialistas e rachar fio de cabelo ao meio. Amo a liberdade. Amo o ar sobre a terra fresca. É melhor dormir em meio às vacas que em meio às suas etiquetas e respeitabilidades.


:: BU-BA-BAFF! ::
por Umberto Eco, em "O Nome da Rosa"

- Mas não esqueçamos que também há signos que parecem como tais e no entanto são privados de sentido, como blitiri ou bu-ba-baff...

- Seria atroz - disse - matar um homem para dizer bu-ba-baff!

- Seria atroz - comentou Guilherme - matar um homem mesmo para dizer credo in unum Deum...


:
: DICAS CULTURAIS ::
obras de arte performáticas de Chris Burden, citadas por James Gaardner

Em Velvet Water, em 1974, "repetidamente, mergulhei a cabeça em um tanque numa tentativa de respirar água. Depois de 5 minutos comecei a tremer e desmaiei". A mais famosa das performances de Chris Burden foi SHOOT, apresentada em Santa Ana, em 1971. "Às 19:45 um amigo me deu um tiro no braço esquerdo. Era uma bala de cobre rifle longo, calibre 22. Ele estava a menos de 5 metros de distância". A bala existe até hoje como relíquia.


:: ESTAGNAÇÃO ::
por Georg Heym, poeta expressionista alemão, gheym@zyklopenstädte.com.au

... Se pelo menos alguém iniciasse uma guerra, nem precisaria ser justa. Essa paz é tão estagnante.

:: FIM DO MUNDO ::
Jakob van Hoddis, 1911, hoddis@mordviertdel-zyklopenstädte.com.au

O chapéu voa da cabeça do cidadão,
Em todos os ares retumba-se gritaria.
Caem os telhadores e se despedaçam
E nas costas – lê-se – sobe a maré.

A tempestade chegou, saltam à terra
Mares selvagens que esmagam largos diques.
A maioria das pessoas tem coriza.
Os trens precipitam-se das pontes.


:: VOCÊ PERGUNTA, NÓS NÃO DAMOS A MÍNIMA ::
Questionamentos sadios de uma sociedade doente

??? Afinal, de uma vez por todas, o que é a "Corporação" de que vocês tanto falam? (Silas, Votuporanga-SP)




EXPEDIENTE

Este Zine é impessoal. Computadores-robô meticulosamente programados desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão neutra e imparcial da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".

 


... Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado (que vem logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido) - Stephanie A.

Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque (oinc!) estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@brfree.com.br, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". Se quiser que mais vítimas recebam o Zine, também escreva para esse e-mail mandando o endereço dos condenados e o número e senha de suas contas bancárias.

!!DAMN!! Zine - o zine das coisas que foram, das coisas que são o que são, das que não são o que não são e das que poderiam vir a ser o que não foram. Perfeito para forrar o chão de barracas fajutas e para embrulhar mortadela. Parceiro do tablóide norte-americano "O Sol da Meia Noite", mas não olhe pra trás porque tem um fauno fritando ervilhas nas suas omoplatas.

"Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe"


God is coming.
Look busy.



2005 Vanessa Barbara