Andre Coelho/Getty Images

The New York Times
7 de fevereiro de 2022

por Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Read in English

SÃO PAULO, Brasil — Todos os dias eu desejo a mesma coisa: que a minha filha de 3 anos e meio possa receber sua vacina contra a Covid-19.

No ano passado, ela parecia estar sempre doente. Vivia com febre e tossindo, ou com o nariz escorrendo e a garganta dolorida. Encarou quatro testes PCR e sete testes rápidos (um deles, em março, confirmou que ela tinha o vírus). Passamos o ano inteiro basicamente esfregando suas diminutas narinas e afastando-a da escola sempre que um aluno ou professor testava positivo.

Às vezes podia ser engraçado. Imagine uma criança pequena se perguntando, num tom de voz muito sério, se ela teria se contaminado com o coronavírus porque tirou a máscara de dinossauro na hora do lanche. Mas, em geral, era exaustivo e assustador. Nossa filha estava desenvolvendo o sistema imune no meio de uma pandemia, e não havia muita coisa que pudéssemos fazer a respeito.

Eu certamente não podia contar com o nosso presidente. Conforme o previsto, Jair Bolsonaro tem piorado uma situação que já é difícil. Depois de falhar em sabotar as campanhas de vacinação dos adultos e adolescentes, ele concentrou os esforços em atrapalhar a imunização das crianças. Mas contra a força do nosso sistema de saúde — e contra o poderoso apetite dos brasileiros por vacinas — seus planos malignos fracassaram.

O método preferido de Bolsonaro é o alarmismo. Ele sugeriu que os efeitos colaterais da vacina eram uma “incógnita” e que não havia um “antídoto” para eles. Colocando-se na posição de uma espécie de tio sábio, ainda que um tio totalmente delirante, ele aconselhou que os pais e responsáveis não se deixassem “levar pela propaganda” em torno da vacinação infantil. “A minha filha de 11 anos não será vacinada,” ele informou à nação de maneira solene. (Que pena dessa pobre criança.)

Mas suas táticas vão além. Ainda que as vacinas de Covid-19 para crianças tenham se provado seguras e eficazes, o governo não mostrou nenhuma pressa em comprá-las. No dia 16 de dezembro, a independente Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tomou a responsabilidade para si e aprovou o uso da vacina da Pfizer em crianças de 5 a 11 anos. Bolsonaro partiu para a ação: disse que a decisão era “lamentável” e “inacreditável.”

Insatisfeito com o simples repúdio, ele então pediu os nomes das autoridades de saúde responsáveis pela aprovação, dizendo que queria divulgar o nome dessas pessoas para que o público pudesse “formar o seu juízo”. Isso foi, para dizer o mínimo, imprudente: nos últimos meses, os diretores da agência receberam centenas de ameaças de morte de pessoas que se opunham à vacinação infantil. (Qual o próximo passo? Linchar profissionais de saneamento? Botar fogo em receitas de penicilina?)

Conforme o ano chegava ao fim, o governo tentou atrasar a campanha propondo uma absurda consulta pública sobre o tema. Também planejava exigir receita médica para a vacinação, imposição que os governadores rejeitaram e que foi depois retirada. Além disso, o Ministério da Saúde continua repetindo que a vacinação infantil é uma “decisão dos pais,” dando a entender que pode não ser uma boa ideia. A cada passo, Bolsonaro tentou obstruir o acesso das crianças à vacinação, como se pegar coronavírus fosse preferível.

Felizmente para nós, ele falhou. A partir de 14 de janeiro, crianças de 5 a 11 anos começaram a receber o imunizante da Pfizer. Ainda que tenhamos uma quantia de doses insuficiente para atender as 20,5 milhões de crianças do país nessa faixa etária, o montante está sendo suplementado pela CoronaVac, a vacina chinesa que tem a vantagem de ser produzida localmente pelo Instituto Butantan. Como em outras campanhas de vacinação do país, podemos esperar uma ávida adesão.

O presidente, porém, não parece ser capaz de aceitar que os brasileiros são “tarados por vacinas,” como ele observou pejorativamente. Por aqui, 82 por cento da população está vacinada com pelo menos uma dose, e mesmo a maioria do público antivacina toma suas doses diligentemente. O comprometimento à vacinação vem dos lugares mais estranhos. No Rio de Janeiro, um vendedor ambulante de certificados falsos de vacinação — alguém de quem se esperaria uma falta absoluta de preocupação com o status vacinal alheio — repreendeu com firmeza um possível comprador. “Agora, o certo é o senhor tomar a vacina, entendeu?” ele disse. “Tem que tomar a vacina.”

É verdade que alguns países estão chegando a diferentes conclusões sobre a importância de vacinar as crianças. Na Suécia, por exemplo, as autoridades de saúde decidiram que não viam um benefício claro para imunizar as crianças de 5 a 11 anos de idade. O principal argumento de Bolsonaro, porém, é que o número de óbitos não justifica o esforço. Bem, de acordo com o Ministério da Saúde, 1.467 crianças menores de 11 anos morreram de Covid-19 — uma parcela pequena dos 632 mil brasileiros que perderam a vida para o vírus, mas um número inaceitável de qualquer jeito.

Além disso, a vacinação não só previne o sofrimento das crianças, mas também protege o resto de nós. As crianças transmitem o vírus; enquanto elas continuarem vulneráveis, todos nós estaremos. E no momento, em meio a uma escalada sem precedentes de casos de Covid-19, os brasileiros estão bastante vulneráveis. Os não vacinados se encontram particularmente em risco, e aqui eles são principalmente crianças. Em São Paulo, registrou-se uma elevação de mil por cento no número de internados em UTIs pediátricas do fim de dezembro para cá.

De modo que o início da campanha de vacinação para crianças acima de 5 anos foi uma fonte de alegria para quase todo mundo — menos para o presidente, é claro. A maior parte das escolas vai retomar as aulas presenciais em fevereiro, após as férias de verão, e será um alívio enorme ver milhões de crianças parcialmente imunizadas.

Minha filha não será uma delas: ela ainda é muito nova para ser vacinada. Mas como família estamos nos sentindo, pela primeira vez em algum tempo, cuidadosamente otimistas. De modo geral, os esforços de Bolsonaro para subverter nosso sistema de saúde falharam. Cada um dos ataques de birra do presidente é um sinal desse fracasso — e, para nós, um motivo de celebração.


Uma versão deste artigo apareceu na edição doméstica do New York Times em 9/2/2022, Section A, Page 19 com a manchete: “Bolsonaro’s Latest Sabotage Efforts Have Failed”.

Rafael Silveira

I became an elephant, an octopus, a balloon. I grew giant hands. But I couldn’t shake my sadness.

The New York Times
Dec. 26, 2021

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Ler em português | Leer en español

JUIZ DE FORA, Brazil — My first encounter with ketamine did not go well.

A lifelong depressive — I picked up the habit of despairing sadness in early adulthood, and it remained faithfully with me — I’d turned to a more experimental form of treatment: ketamine infusions, in which a kindly anesthesiologist funnels the drug into a sad person’s veins for around 50 minutes and hopes it perks her up.

Forty-five minutes into my first session, I rather anxiously asked my partner, who was in the room with me, if our 3-year-old daughter was fine. He decided it was the perfect time for a joke. Our daughter, he answered, was safe at home — and as a matter of fact, he added, she was already a very independent 15-year-old.

I panicked. While under the strong, dissociative effect of the drug, patients sometimes enter what’s called a k-hole, in which their sense of time and space is distorted or eliminated. In that state of oblivion, I found it entirely plausible that my daughter was not a toddler anymore, but a strong-willed teenager. I became very distressed. My heartbeat accelerated. The anesthesiologist hurriedly ended the session as my partner said: “I’m kidding! Sorry! She’s still 3!”

It was an inauspicious start, but I was determined to make the best of it. Ketamine, long used as an anesthetic but better known as an illegal party drug and, of course, a horse tranquilizer, has in recent years been gaining traction as an antidepressant. People have written enthusiastic accounts of their experiences, and researchers and psychiatrists, in a cascade of studies, have pointed to its possible benefits, not least the speed with which it can alleviate symptoms. Today, hundreds of clinics around the world provide infusions to people who have found little, if any, improvement with other treatments.

That’s where I come in. Over the years, apart from the good old psychotropic medications, I have tried several types of talk therapy, meditation, acupuncture, singing lessons, bungee jumping and transcranial magnetic stimulation. (I still have sweet memories of the woodpecker sounds tapped into my brain.)

Nothing worked. So I was ready to jump at the horse tranquilizer. As an expert in psychological distress, and in the spirit of scientific inquiry, I’m here to share my findings.

In August, I found myself at a low ebb: The Covid pandemic was continuing its deadly course, Brazil was ruled by someone who claimed that vaccines could turn people into crocodiles, and I was confined at home with my often sick toddler. So I signed up for a course of infusions. Each session — there would be six in total — cost me 1,700 reais, around $300. It was very expensive, but it felt like a gamble worth taking. And besides, for an obsessive like me, it would be a shame not to complete the set.

Ketamine is not a classic psychedelic, but it can have a strong dissociative effect; people might feel detached from reality and from their bodies. Under its influence, patients usually enjoy mild and agreeable feelings.

I certainly had some of that. Sometimes I felt I was an elephant swimming under the sun, an extroverted octopus or a balloon slowly inflating. I repeatedly requested the presence of a dog. I also grew giant hands. This was all quite pleasant.

Other times, not so much. At the start of my second session, I blurted out a silly thought: “An infusion of ketamine is like taking a two-hour Uber trip with a clown.” (Luckily for me, the anesthesiologist didn’t seem offended.) But a few moments later, my mind slipped, inevitably, to evil clowns — and that’s how our president, Jair Bolsonaro, appeared during one of my bad trips. His eyes were glazed, hair parted to the side, as he hovered happily over the pandemic dead. It was terrifying.

During these frightening moments, I often asked to “come back,” saying that the experience was “too difficult.” I pleaded for help. In my worst moments, I felt that I had to solve impossible temporal paradoxes to stay alive. (What if this session began before I was born? What if I’m permanently stuck in a ketamine loop?) My brain was filled with loud construction sounds, and I felt I was about to die.

Little by little, my body habituated to the drug, and the sessions became gentler. It was important to bring my own music — relaxing, uplifting songs. Nothing distorted or anxiety-inducing. (Anything from Radiohead was off limits, believe me.) The brain easily tuned in to a nice song, which could guide the journey. When things were going to a dark place, I learned to say, “Change the song, please.” And back I went to a garden full of happy dogs.

But by the end, after six infusions over three weeks, I didn’t notice any easing of my depression. I still felt sad, dispirited and anxious; nothing had changed. So I called it off. Enough of giant hands and k-holes for me.

I wouldn’t deem it a failure, though, not even a terrible waste of money. Something important remained from my ketamine experience: For the first time I realized how powerfully depression is ingrained within my brain. I physically felt it — the black dog — acting inside my old neural wirings.

It was something concrete, physical, like ruts where traumas line up to bring me bad thoughts. That’s why it’s so easy to stay there, trapped by pain, and why it takes so much effort to escape. I understood that chronic depression might not respond to language and thoughts, that only a rewiring of the brain’s neural pathways might dislodge it.

Ketamine didn’t do the trick for me, sadly. But I’d be ready and waiting to try anything else the scientists have up their sleeves. (Psilocybin, anyone?) I have, at the very least, learned an important lesson: no jokes during hallucinogenic trips. And no clowns, either.


A version of this article appears in print on Dec. 28, 2021, Section A, Page 19 of the New York edition with the headline: “I Took Ketamine for My Depression. Things Got Pretty Weird.”

Rafael Silveira

Virei um elefante, um polvo, um balão. Ganhei mãos gigantes. Mas não consegui me livrar da tristeza.

The New York Times
26 de dezembro de 2021

por Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Read in EnglishLeer en español

JUIZ DE FORA, Brasil — Meu primeiro encontro com a cetamina não correu muito bem.

Após uma vida inteira de depressão — adquiri o hábito da tristeza desesperançada no início da vida adulta, e ela permaneceu fielmente comigo desde então — voltei-me para um tratamento mais experimental: infusões de cetamina, que é quando um amável anestesista injeta a droga nas veias de uma pessoa triste por cerca de 50 minutos, na esperança de animá-la um pouco.

Quarenta e cinco minutos após o início da primeira sessão, e de forma um tanto quanto ansiosa, perguntei para o meu parceiro, que estava na sala comigo, se nossa filha de 3 anos estava bem. Ele decidiu que era o momento perfeito para uma piada. Nossa filha estava segura em casa, ele respondeu — a bem da verdade, ela já era uma jovem de 15 anos bastante independente.

Entrei em pânico. Sob o efeito forte e dissociativo da droga, às vezes os pacientes entram no que é chamado de k-hole, uma espécie de buraco negro onde o senso de tempo e espaço é distorcido ou eliminado. Nesse estado de esquecimento, achei inteiramente plausível que minha filha não fosse mais uma criança pequena, mas uma adolescente decidida. Fiquei muito angustiada. Meu coração acelerou. O anestesista encerrou a sessão às pressas, enquanto meu parceiro dizia: “Desculpa, é brincadeira! Ela ainda tem 3 anos!”

Não foi um começo muito auspicioso, mas eu estava determinada a aproveitar a experiência ao máximo. A cetamina, há muito utilizada como anestésico, porém mais conhecida como droga recreativa ilegal e, é claro, tranquilizante para cavalos, tem ganhado espaço nos últimos anos como um medicamento antidepressivo.

Muita gente escreveu relatos entusiasmados sobre suas experiências com a substância — e pesquisadores e psiquiatras, em uma torrente de estudos, apontaram para seus possíveis benefícios, particularmente para a rapidez com que seria capaz de aliviar os sintomas. Hoje, centenas de clínicas pelo mundo oferecem infusões a pessoas que registraram pouca (ou nenhuma) melhora com outros tratamentos.

É aí que eu entro na história. Ao longo dos anos, para além dos bons e velhos medicamentos psicotrópicos, tentei vários tipos de terapia de fala, meditação, acupuntura, aulas de canto, bungee jumping e estimulação magnética transcraniana. (Ainda guardo doces memórias dos sons de pica-pau que batucaram em meu cérebro.) Nada funcionou. De forma que eu estava pronta para mergulhar no tranquilizante para cavalos. Como especialista em sofrimento psicológico, e no espírito da investigação científica, venho aqui compartilhar minhas descobertas.

Em agosto, eu estava numa fase ruim: a pandemia continuava seu curso mortal, o Brasil era governado por alguém que afirmava que as vacinas podiam transformar as pessoas em jacarés, e eu estava confinada em casa com uma criança pequena constantemente resfriada. Então marquei uma série de infusões. Cada sessão — seriam seis no total — custava 1,700 reais, aproximadamente 300 dólares. Era muito caro, mas me pareceu uma aposta digna de se considerar. E além do mais, para alguém obsessivo, seria vergonhoso se eu não completasse a série.

A cetamina não é um psicodélico clássico, mas pode ter um forte efeito dissociativo — as pessoas podem se sentir desconectadas com a realidade e com o próprio corpo. Sob sua influência, os pacientes em geral experimentam sensações leves e agradáveis. Eu decerto tive algumas delas. Às vezes sentia que era um elefante nadando sob o sol, um polvo extrovertido ou um balão inflando bem devagar. Eu repetidamente requisitei a presença de um cachorro. Também ganhei mãos gigantes. Isso tudo foi muito agradável.

Em outros momentos, nem tanto. No início da minha segunda sessão, deixei escapar um pensamento tolo: “Uma infusão de cetamina é como uma viagem de Uber de duas horas com um palhaço.” (Por sorte, o anestesista não pareceu ofendido.) Mas alguns instantes depois, minha mente escorregou, de forma inevitável, para palhaços malignos — e foi assim que nosso presidente Jair Bolsonaro apareceu em uma das minhas viagens ruins. Seus olhos estavam vidrados, os cabelos partidos para o lado, enquanto ele pairava alegremente sobre os mortos da pandemia. Foi aterrorizante.

Nesses momentos apavorantes, eu costumava pedir que me trouxessem “de volta,” dizendo que a experiência era “difícil demais.” Eu implorava por ajuda. Nos piores instantes, sentia que precisava resolver paradoxos temporais impossíveis para continuar viva. (E se essa sessão tivesse começado antes de eu nascer? E se eu estiver presa para sempre em um loop de cetamina?) Meu cérebro era preenchido por atordoantes ruídos de construção e eu sentia que estava prestes a morrer.

Pouco a pouco, meu corpo se habituou à droga, e as sessões ficaram mais suaves. Era importante trazer minhas próprias músicas — canções relaxantes e felizes. Nada distorcido ou que gerasse ansiedade (qualquer coisa do Radiohead estava fora de questão, acreditem). O cérebro facilmente se conectava a uma boa canção, que podia guiar a jornada. Quando as coisas estavam indo para um lugar ruim, aprendi a dizer: “Pode mudar a música, por favor?” E de volta eu ia para um jardim cheio de cães felizes.

Mas no final, depois de seis infusões em três semanas, não notei nenhum alívio da minha depressão. Ainda me sentia triste, desanimada e ansiosa; nada havia mudado. Então suspendi tudo. Chega de mãos gigantes e k-holes para mim.

Contudo, eu não consideraria a tentativa um fracasso — nem mesmo um tremendo desperdício de dinheiro. Algo importante restou da minha experiência com cetamina: pela primeira vez eu percebi o quão poderosamente a depressão está arraigada no meu cérebro. Eu a senti fisicamente — o cão negro — agindo dentro de minhas velhas conexões neurais.

Era algo concreto, físico, como sulcos onde os traumas se enfileiram para me trazer maus pensamentos. É por isso que é tão fácil ficar lá, aprisionada pela dor, e por que é preciso tanto esforço para escapar. Entendi que a depressão crônica pode não responder à linguagem e aos pensamentos, e que só uma reprogramação das vias neurais pode ser capaz de expulsá-la.

Infelizmente a cetamina não deu conta do recado. Mas estou pronta e ansiosa para testar qualquer outra coisa que os cientistas tenham na manga (psilocibina, alguém?). No mínimo, aprendi uma lição importante: nada de piadas durante viagens alucinógenas. E nada de palhaços também.


Uma versão deste artigo apareceu na versão impressa do The New York Times de 28/12/2021, Section A, Page 19, com a manchete: “I Took Ketamine for My Depression. Things Got Pretty Weird”. Tradução para o português da autora.

Rafael Silveira

The New York Times
Dec. 26, 2021

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Read in English | Ler em português 

JUIZ DE FORA, Brasil — Mi primer encuentro con la ketamina no salió bien.

Puesto que he sido depresiva toda la vida —adopté la costumbre de estar desesperadamente triste en la adultez temprana y así he seguido—, había recurrido a una forma más experimental de tratamiento: las infusiones de ketamina, en las que un anestesiólogo inyecta con gentileza el medicamento en las venas de una persona triste durante unos 50 minutos y espera que eso la anime.

Tras 45 minutos en mi primera sesión, le pregunté ansiosa a mi pareja, que estaba en la habitación conmigo, si nuestra hija de 3 años estaba bien. A él se le ocurrió que era el momento perfecto para decir una broma. Nuestra hija, respondió, estaba a salvo en casa, pero, de hecho, ya era una chica independiente de 15 años.

Entré en pánico. Mientras se encuentran bajo el efecto fuerte y disociativo de la droga, los pacientes a veces entran en lo que se denomina el “agujero k”, cuando la percepción del tiempo y el espacio se distorsiona o desaparece. En ese estado de inconsciencia, me pareció totalmente posible que mi hija ya no fuera pequeña, sino una adolescente testaruda. Me sentí muy angustiada. Mi ritmo cardiaco se aceleró. El anestesiólogo terminó la sesión de prisa mientras mi pareja decía: “Estoy bromeando. Lo siento. ¡Aún tiene 3 años!”.

Fue un comienzo desfavorable, pero estaba decidida a aprovecharlo al máximo. La ketamina, que durante mucho tiempo se usó como anestésico pero es más conocida como droga ilegal en las fiestas y, desde luego, como tranquilizante para caballos, en años recientes se ha utilizado cada vez más como un antidepresivo. La gente ha escrito anécdotas entusiastas de sus experiencias, y los investigadores y psiquiatras, en una serie de estudios, han señalado sus posibles beneficios, como la velocidad con la que alivia los síntomas. Actualmente, cientos de clínicas en todo el mundo proporcionan infusiones a las personas que han mejorado poco o nada con otros tratamientos.

Ese es mi caso. Con los años, además de los viejos confiables medicamentos psicotrópicos, también he probado varios tipos de terapias de conversación, meditación, acupuntura, lecciones de canto, salto en bungee y estimulación magnética transcraneal. (Aún tengo dulces recuerdos de los sonidos del pájaro carpintero que se grabaron en mi cerebro).

Nada funcionaba. Así que estaba lista para probar el tranquilizante para caballos. Como experta en angustia psicológica, y en aras de la investigación científica, escribo esto para compartir mis hallazgos.

En agosto, me encontré en un momento difícil: la pandemia continuaba su marcha mortífera, Brasil era gobernado por alguien que afirmaba que las vacunas podrían convertir a las personas en cocodrilos, y yo estaba encerrada en casa con mi hija pequeña, a menudo enferma. Así que acepté que me aplicaran una ronda de infusiones. Cada sesión —habría seis en total— me costaría 1700 reales, o cerca de 300 dólares. Era muy costoso, pero me parecía un riesgo que valía la pena tomar. Además, para una obsesiva como yo, sería una lástima no terminar el tratamiento.

La ketamina no es un psicodélico clásico, pero puede tener un efecto disociativo potente: las personas podrían sentirse alejadas de la realidad y de su propio cuerpo. Bajo su influjo, los pacientes suelen tener sensaciones leves y agradables. En efecto, sentí algo de eso. A veces sentía que era un elefante que nadaba bajo el sol, un pulpo extrovertido o un globo que se inflaba poco a poco. En repetidas ocasiones, pedí que un perro estuviera presente. También me crecieron manos gigantes. Todo me pareció bastante agradable.

En otras ocasiones, no fue así. Al comienzo de mi segunda sesión, se me salió una idea tonta: “Una infusión de ketamina es como tomar un viaje de Uber de dos horas con un payaso”. (Para mi suerte, el anestesiólogo no pareció ofenderse). Pero unos momentos más tarde, mi mente pasó a la idea de los payasos malvados… y así fue como nuestro presidente, Jair Bolsonaro, apareció durante uno de mis malos viajes. Sus ojos brillaban, con el cabello peinado de lado, mientras flotaba feliz por encima de los muertos de la pandemia. Fue aterrador.

Durante esos momentos espeluznantes, a menudo pedía que “me regresaran”, pues decía que la experiencia era “demasiado difícil”. Rogaba que me ayudaran. En mis peores momentos, sentía que debía resolver paradojas temporales imposibles para seguir con vida. (¿Y si esta sesión comenzaba antes de que yo naciera? ¿Y si quedaba atrapada en un ciclo permanente de ketamina?). Mi cerebro estaba lleno de ruidos de construcción y sentía que estaba a punto de morir.

Poco a poco, mi cuerpo se acostumbró a la droga, y las sesiones se volvieron más amigables. Era importante traer mi propia música: canciones animadas y relajantes. No debía llevar nada que provocara distorsiones o ansiedad (cualquier cosa de Radiohead estaba prohibida, créanme). El cerebro se adaptaba fácilmente a las canciones lindas, las cuales podían guiar el viaje. Cuando las cosas se tornaban oscuras, aprendí a decir: “Cambien la canción, por favor”. Y así regresaba a un jardín lleno de perros felices.

No obstante, para el final, después de seis infusiones a lo largo de seis semanas, noté que mi depresión no mejoraba. Aún me sentía triste, desanimada y ansiosa; nada había cambiado. Así que dejé de hacerlo. Ya había sido suficiente de manos gigantes y agujeros de ketamina para mí.

Sin embargo, no diría que fue un fracaso ni un gran desperdicio de dinero. Aprendí algo importante de la experiencia con ketamina: por primera vez, me di cuenta de la fuerza con la que la depresión está aferrada a mi cerebro. La sentía físicamente —aquel perro negro—, cómo recorría mis conexiones neuronales de siempre.

Era algo concreto, físico, como baches donde los traumas se forman para traerme malos pensamientos. Por eso es tan fácil estar ahí, atrapada en el dolor, y por eso cuesta tanto trabajo salir de ahí. Entendí que la depresión clínica quizá no responde al lenguaje y a las ideas, que tal vez solo un reacomodo de los senderos neuronales del cerebro podría acabar con ella.

La ketamina no me funcionó, tristemente. Pero estoy lista para probar cualquier otra cosa que los científicos inventen (¿quizá la psilocibina , puede ser?). Por lo menos aprendí algo muy importante: no hay que hacer bromas durante los viajes alucinógenos. Y tampoco hay que incluir payasos.

Eraldo Peres/Associated Press

The Brazilian president’s catastrophic leadership has been painstakingly laid bare

The New York Times
Oct. 28, 2021

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Ler em português

SÃO PAULO, Brazil — If my country had managed just an average response to the pandemic, over 400,000 Brazilians would still be alive. That’s the stark conclusion of the epidemiologist Pedro Hallal, whose testimony, along with many others, is collected in the final report on the government’s handling of Covid-19. Released last week, it’s the culmination of a riveting monthslong congressional inquiry.

We don’t know, of course, exactly how many of the country’s 606,000 deaths could have been averted: Mr. Hallal’s is just one estimate. But the truth is that we don’t have an average president. Not even a slightly bad one. We have Jair Bolsonaro, a man who maintains that the primary victims of Covid-19 have been “the obese and those who became frightened.”

It was about time someone documented Mr. Bolsonaro’s catastrophic stewardship of the country through the pandemic, and the 1,288-page report does just that. (I read it and I’m still burning with rage.) Painstakingly assembled, it details how Mr. Bolsonaro actively helped to spread the virus, no matter the cost to human life. And it recommends that he be charged with nine crimes, including irregular use of public funds, violation of social rights and, most damningly, crimes against humanity.

Graves of Covid-19 victims in Manaus, Brazil. Credit: Michael Dantas/Agence France-Presse — Getty Images

A product of six months of work by a special Senate committee, the document is a welcome effort to provide Brazilians with the beginnings of accountability. But, probably, no more: It’s unlikely Mr. Bolsonaro, protected by a friendly prosecutor general, will ever face the charges leveled against him. It now falls to international bodies, like the International Criminal Court, to hold him to account. For true justice and restitution, Brazilians will have to keep waiting.

The report certainly won’t rein in Mr. Bolsonaro’s behavior. He dismissed it last week, saying, “We know we did the right thing from the first moment.” So he continues to undermine measures to curb Covid-19 transmission, such as masking, social distancing and mass testing. He still promotes an “early treatment” with ineffective drugs such as hydroxychloroquine and says publicly that he’s not going to be vaccinated. (In December he said he “got the best vaccine: the virus.”) Last week, he even suggested that fully immunized people are more vulnerable to H.I.V.

Mr. Bolsonaro’s commitment to fake news is fully captured in the report. Together with his three eldest sons and other high-ranking officials, he used the power of government to pump out misinformation. The Secretariat of Social Communication, for example, admitted to paying social media influencers to advocate ineffective drugs. And the department celebrated the fact that Brazil was one of the countries with the highest number of people “healed” of Covid-19. (Which is basically saying that Brazil has one of the highest rates of infection, hardly something to brag about.)

The document is full of revelations and macabre anecdotes, including one of my favorite bizarre statements from a government official. (It’s difficult to choose, I admit.) During a radio interview in March 2021, Onyx Lorenzoni, then secretary general of the presidency, said that lockdowns were not effective at reducing the spread of the virus. Why? “Can anyone prevent, in urban areas, the circulation of birds, street dogs, cats, rats, fleas, ants, insects? Can anyone promote the lockdown of insects? Of course not. And all of them carry the virus.”

But underneath the anecdotes is a terrifying account of the government’s apparent mendacity and corruption. For example, the government delayed the purchase of hundreds of millions of vaccine doses from proper sources while reportedly trying to negotiate with murky middlemen for an unapproved (and overpriced) vaccine. Mr. Bolsonaro was informed about irregularities in the deal, but there’s no evidence that he warned law enforcement officials about it.

Even worse, the government allegedly made a pact with Prevent Senior, a major private health care chain, to produce data about the efficacy of hydroxychloroquine and other unproven drugs in the treatment of Covid-19. Twelve whistle-blowing doctors have accused the organization of testing drugs on patients without their knowledge and without having proper authorization from the ethics commission. (Prevent Senior has denied all wrongdoing.) This shady human experiment took place, the report claims, with the blessing of the president and members of the federal government.

On Tuesday, the report was approved in a Senate vote. “There is a murderer hidden at the presidential palace,” said Renan Calheiros, a senator and the report’s main author, at the end of session. It was a victory, but it could have been even more: The initial draft proposed that Mr. Bolsonaro be charged with mass homicide and genocide against Brazil’s Indigenous population, who have been particularly hard hit, but those charges were later removed. Even so, the vote — effectively accusing a sitting president of crimes against humanity — amounts to a remarkable condemnation of Mr. Bolsonaro.

The report also recommends indicting two companies and 77 other people, including Mr. Bolsonaro’s three eldest sons, two of his aides, the current health minister (and his predecessor), a handful of other ministers, a few congressmen, the former secretary of social communication, the president of the Brazilian Federal Council of Medicine, and the owners and the C.E.O. of Prevent Senior. A whole gallery of rogues could be called to answer for their sins.

But that’s unlikely to happen. While the document is certainly something to celebrate, it’s sadly not enough to make Mr. Bolsonaro and his allies answer for their actions. A criminal case would have to be brought by Brazil’s prosecutor general, Augusto Aras, who was appointed by the president and is considered an ally. It’s hard to imagine that happening.

I tend to think that history will condemn Mr. Bolsonaro and his allies for their horrendous crimes against our people, for making us crave an average government. But that’s for the future. In the present, I have just one simple wish: that the International Criminal Court takes a good look at the report, with my compliments.


A version of this article appears in print on Oct. 29, 2021, Section A, Page 20 of the New York edition with the headline: We Knew Bolsonaro Was Guilty.

Eraldo Peres/Associated Press

A liderança catastrófica do presidente brasileiro foi minuciosamente exposta

The New York Times
28 de outubro de 2021

por Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Read in English

SÃO PAULO, Brasil — Se meu país tivesse dado uma resposta apenas mediana à pandemia, mais de 400 mil brasileiros estariam vivos. Essa é a dura conclusão do epidemiologista Pedro Hallal, cujo depoimento, ao lado de muitos outros, é registrado no relatório final sobre a gestão do governo no combate à Covid-19. Divulgado na semana passada, é o ápice de uma envolvente Comissão Parlamentar de Inquérito que durou meses.

É claro que não sabemos exatamente quantas das 606 mil mortes no país poderiam ter sido evitadas: Hallal faz apenas uma estimativa. Mas a verdade é que não temos um presidente mediano. Nem mesmo um presidente levemente ruim. Temos Jair Bolsonaro, um homem que insiste em dizer que as principais vítimas da Covid-19 foram “os obesos e quem estava apavorado.”

Já era hora de documentarem o catastrófico comando do país exercido por Bolsonaro ao longo da pandemia, e o relatório de 1.288 páginas faz exatamente isso. (Eu li e ainda estou queimando de raiva.) Minuciosamente elaborado, o documento detalha como Bolsonaro ajudou ativamente na disseminação do vírus, não importando qual o custo em vidas humanas. E recomenda que ele seja indiciado por nove crimes, incluindo emprego irregular de verbas públicas, violação de direitos sociais e, o mais grave de todos, crimes contra a humanidade.

Produto de seis meses de trabalho de um comitê especial do Senado, o documento é um esforço bem-vindo de prover os brasileiros de um princípio de responsabilização. Mas possivelmente não é nada além disso: é improvável que Bolsonaro, protegido por um amigável procurador-geral, tenha de eventualmente enfrentar as acusações apontadas contra ele. Cabe agora a organismos internacionais, como o Tribunal Penal Internacional, fazê-lo responder por seus atos. Os brasileiros terão de continuar esperando por justiça e restituição verdadeiras.

O relatório decerto não irá refrear o comportamento do presidente. Bolsonaro o desdenhou na semana passada, ao declarar: “Sabemos que fizemos a coisa certa desde o primeiro momento.” Então ele continua sabotando as medidas para conter a transmissão da Covid-19, como uso de máscaras, distanciamento social e testagem em massa. Ainda promove o “tratamento precoce” com medicamentos ineficazes como a hidroxicloroquina, e diz publicamente que não vai ser vacinado. (Em dezembro, ele comentou que teve “a melhor vacina: foi o vírus.”) Na semana passada, chegou a sugerir que pessoas totalmente imunizadas são mais vulneráveis ao H.I.V.

O empenho de Bolsonaro com as fake news é capturado por inteiro no relatório. Ao lado de seus três filhos mais velhos e outros membros do alto escalão do governo, ele usou o poder estatal para fazer jorrar desinformações. A Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), por exemplo, admitiu ter pago influenciadores em mídias sociais para defender remédios ineficazes. E esse mesmo setor celebrou o fato de que o Brasil era um dos países com o maior número de “curados” da Covid-19. (O que é basicamente dizer que o Brasil tem uma das maiores taxas de infecção — dificilmente um motivo para se gabar.)

O documento está repleto de revelações e anedotas macabras, incluindo aquele que é um dos meus favoritos entre os depoimentos bizarros de um membro do governo. (É difícil escolher, eu admito.) Em uma entrevista para uma rádio em março de 2021, Onyx Lorenzoni, então ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, disse que os lockdowns não eram eficientes para reduzir a disseminação do vírus. Por quê? “Alguém consegue impedir que nas áreas urbanas o passarinho, o cão de rua, o gato, o rato, a pulga, a formiga, o inseto, eles se locomovem? Alguém consegue fazer o lockdown dos insetos? É obvio que não. E todos eles transportam o vírus.”

Mas por trás das anedotas há um relato aterrador da aparente falsidade e corrupção do governo. Por exemplo: o governo atrasou a compra de centenas de milhões de doses de vacina oferecidas por fontes legítimas enquanto supostamente tentava negociar uma vacina não aprovada (e superfaturada) com intermediários obscuros. Bolsonaro foi informado sobre irregularidades na negociação, mas não há evidências de que ele tenha alertado a polícia a respeito.

Pior: aparentemente o governo fez um pacto com a Prevent Senior, uma grande operadora privada de saúde, para produzir dados sobre a eficácia da hidroxicloroquina e outros remédios não comprovados cientificamente para o tratamento da Covid-19. Doze médicos denunciantes acusaram a empresa de testar remédios sem o consentimento dos pacientes e sem a devida autorização da Comissão de Ética. (A Prevent Senior nega todas as acusações.) Esse tenebroso experimento humano se deu, segundo o relatório, com a aprovação do presidente e membros do governo federal.

Na terça-feira, o relatório foi aprovado em uma votação no Senado. “Há um homicida homiziado no Palácio do Planalto,” disse o senador Renan Calheiros, principal responsável pelo documento, ao final da sessão. Foi uma vitória, mas poderia ter sido maior: o rascunho inicial propunha que Bolsonaro fosse indiciado por homicídio e genocídio contra os indígenas, que foram particularmente afetados pelo vírus, mas essas acusações foram mais tarde removidas. Ainda assim, a aprovação do relatório — que efetivamente acusa um presidente em exercício de crimes contra a humanidade — consiste em uma notável condenação a Bolsonaro.

O parecer também recomenda o indiciamento de duas empresas e 77 outras pessoas, incluindo os três filhos mais velhos de Bolsonaro, dois de seus assistentes, o atual Ministro da Saúde (e seu antecessor), um punhado de outros ministros, alguns deputados federais, o antigo chefe da Secom, o presidente do Conselho Federal de Medicina, e os donos e o diretor executivo da Prevent Senior. Toda uma galeria de malfeitores pode ser chamada a responder por seus pecados.

Mas é improvável que isso vá acontecer. Ainda que o documento seja algo a celebrar, infelizmente não é o suficiente para que Bolsonaro e seus aliados tenham de responder por suas ações. Uma ação penal precisa ser instaurada pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, que foi indicado pelo próprio presidente e é considerado seu aliado. É difícil imaginar que isso ocorra.

Minha tendência é pensar que a história irá condenar Bolsonaro e seus comparsas pelos crimes horrendos cometidos contra a nossa população, e por nos fazer cobiçar um governo mediano. Mas isso é para o futuro. No presente, tenho um único desejo: que o Tribunal Penal Internacional dê uma boa olhada nesse relatório, com os meus cumprimentos.

Claire Merchlinsky/The New York Times; Photographs by AFP, Heuler Andrey via Getty Images

His totalitarian aims are now unmistakable.

The New York Times
Sep. 15, 2021

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Ler em português

SÃO PAULO, Brazil — For weeks, President Jair Bolsonaro of Brazil has been urging his supporters to take to the streets. So on Sept. 7, Brazil’s Independence Day, I was half expecting to see mobs of armed people in yellow-and-green jerseys, some of them wearing furry hats and horns, storming the Supreme Court building — our very own imitation of the Capitol riot.

Fortunately, that was not what happened. (The crowds eventually went home, and no one tried to sit in the Supreme Court justices’ chairs.) But Brazilians were not spared chaos and consternation.

For Mr. Bolsonaro, it was a show of force. In the morning, addressing a crowd of around 400,000 people in Brasília, he said he intended to use the size of the crowd as an “ultimatum for everyone” in the three branches of government. In the afternoon, at a demonstration in São Paulo of 125,000 people, the president called the elections coming in 2022 “a farce” and said that he will no longer abide by rulings from one of the Supreme Court justices. “I’m letting the scoundrels know,” he bellowed, “I’ll never be imprisoned!”

It seems to be part of a plan. By picking a fight in particular with the Supreme Court — which has opened several investigations of him and his allies, including about his role in a potentially corrupt vaccine procurement scheme and his efforts to discredit Brazil’s voting system — Mr. Bolsonaro is attempting to sow the seeds of an institutional crisis, with a view to retaining power. On Sept. 9 he tried to back down a little, saying in a written statement that he “never intended to attack any branch of government.” But his actions are plain: He is effectively threatening a coup.

Perhaps that’s the only way out for Mr. Bolsonaro. (Apart from properly governing the country, something that apparently doesn’t interest him.) The antics of the president, struggling in the polls and menaced by the prospect of impeachment, are a sign of desperation. But that doesn’t mean they can’t succeed.

Mr. Bolsonaro has good reason to be desperate. The government’s mishandling of the Covid-19 pandemic has resulted in the deaths of 587,000 Brazilians; the country faces record rates of unemployment and economic inequality; and it’s also afflicted by soaring inflationpoverty and hunger. Oh, and there’s a huge energy crisis on the way, too.

That has taken its toll on Mr. Bolsonaro’s standing with Brazilians. In July, his disapproval rating rose to 51 percent, its highest-ever mark, according to Datafolha Institute. And ahead of next year’s presidential elections, things are not looking rosy. In fact, polling suggests he’s going to lose. Luiz Inacio Lula da Silva, the center-left politician and former president, is comfortably outstripping Mr. Bolsonaro. As things stand, Mr. Bolsonaro would lose to all possible rivals in a second-round runoff.

This explains Mr. Bolsonaro’s eagerness to push unfounded claims of fraud in Brazil’s electronic voting system. “There’s no way of proving whether the elections were rigged or not,” he said about past elections (including the one he won), during a two-hour TV broadcast in July, while failing to provide any evidence to support his allegations. He has repeatedly threatened to call off the elections if the current voting system remains in place — and although Congress recently rejected his proposal to require paper receipts, he continues to cast doubt on the voting process. (Sound familiar, anyone?)

Then there’s the corruption. A growing number of corruption accusations have been made against the president and two of his sons, who both hold public office. (One is a senator; the other sits on Rio de Janeiro’s City Council.) Prosecutors have suggested that the Bolsonaro family took part in a scheme known as “rachadinha,” which involves hiring close associates or family members as employees and then pocketing a portion of their salary.

For Mr. Bolsonaro, who was elected in part for his promise to rout out corruption, these investigations cast a long shadow. Against this backdrop of ineptitude and scandal, the events of Sept. 7 were an attempt to distract and divert attention — and, of course, to cement divisions.

Efforts to remove Mr. Bolsonaro by parliamentary means are stalled. Though the opposition has so far filed 137 impeachment requests, the process must be initiated by the speaker of the lower house, Arthur Lira, who does not seem inclined to accept them. (That’s not especially surprising: Mr. Lira is a leader of a cluster of center-right parties, known as the “centrão,” to whom Mr. Bolsonaro has handed out important government positions, in the hope of shielding himself from impeachment proceedings.) Only enormous public protests can break the impasse.

There’s no time to lose. The demonstrations last week were not simply political showmanship. They were yet another move to strengthen Mr. Bolsonaro’s position for an eventual power grab ahead of next year’s elections. He didn’t get exactly what he wanted — the numbers, though substantial, were far less than organizers hoped for — but he will keep trying.

Sept. 7 now marks another signal moment in Brazil’s history — when the totalitarian aims of our president became unmistakably clear. For our young democracy, it could be a matter of life or death.


Vanessa Barbara is the editor of the literary website A Hortaliça, the author of two novels and two nonfiction books in Portuguese and a contributing Opinion writer. 

Claire Merchlinsky/The New York Times; Photographs by AFP, Heuler Andrey via Getty Images

Seus objetivos totalitários são hoje inequívocos

The New York Times
15 de setembro de 2021

por Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Read in English

SÃO PAULO, Brasil — Há semanas, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro tem incitado seus apoiadores a tomar as ruas. Por isso, no dia 7 de setembro, Dia da Independência, eu quase esperava ver hordas de pessoas armadas vestindo camisas verde-amarelas, algumas com chapéus de pele com chifres, invadindo o edifício do Supremo Tribunal Federal — nossa própria versão da invasão do Capitólio.

Felizmente, não foi o que ocorreu. (A multidão acabou indo para casa, e ninguém tentou se sentar nas cadeiras dos juízes do Supremo.) Mas os brasileiros tiveram sua cota de caos e consternação.

Para Bolsonaro, foi uma demonstração de força. Pela manhã, dirigindo-se a uma multidão de cerca de 400 mil pessoas em Brasília, ele disse que pretendia usar o tamanho do público como um “ultimato para todos os que estão na Praça dos Três Poderes.” À tarde, em um protesto em São Paulo com 125 mil pessoas, o presidente chamou as eleições de 2022 de “uma farsa” e afirmou que não irá mais cumprir as decisões de um dos juízes do Supremo. Seu propósito: “dizer aos canalhas”, urrou, “que nunca serei preso!”

Parece ser parte de um plano. Ao comprar briga especificamente com o Supremo Tribunal Federal — que abriu inúmeras investigações sobre o presidente e seus aliados, incluindo seu papel em um esquema potencialmente corrupto de compra de vacinas e seus esforços para desacreditar o sistema de votação brasileiro — Bolsonaro está tentando semear uma crise institucional, com vistas a se manter no poder. No dia 9 de setembro ele tentou recuar um pouco, dizendo em uma carta que não teve “nenhuma intenção de agredir quaisquer dos poderes.” Mas suas ações são claras: ele está de fato ameaçando dar um golpe.

Talvez essa seja a única saída para Bolsonaro. (Com exceção de governar propriamente o país, algo que aparentemente não lhe desperta o interesse.) Os atos bizarros do presidente, que está debilitado nas pesquisas e se vê ameaçado pela perspectiva de um impeachment, são um sinal de desespero. Mas isso não quer dizer necessariamente que não podem ter êxito.

Bolsonaro tem bons motivos para se desesperar. A incompetência do governo em lidar com a pandemia de Covid-19 resultou na morte de 587 mil brasileiros; o país ostenta taxas históricas de desemprego e desigualdade econômica; e também sofre com uma crescente inflaçãopobreza e fome. Ah, e temos uma enorme crise energética a caminho.

Tudo isso cobrou um preço alto do prestígio de Bolsonaro junto aos brasileiros. Em julho, a taxa de reprovação do presidente subiu para 51 por cento, maior índice da história, de acordo com o Datafolha. E para as eleições presidenciais do ano que vem, a situação também não é muito favorável. Na verdade, as pesquisas indicam que ele vai perder. Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente de centro-esquerda, está superando Bolsonaro com certa folga. Se as coisas continuarem como estão, Bolsonaro perde para todos os possíveis adversários no segundo turno.

Isso explica a avidez do presidente em promover acusações infundadas de fraude no sistema eletrônico de votação do Brasil. “Não tem como comprovar que as eleições foram ou não foram fraudadas,” ele declarou sobre eleições passadas (inclusive a que ele venceu), durante uma transmissão pela TV que durou duas horas, em julho, enquanto falhava em fornecer quaisquer provas para apoiar suas alegações. Ele ameaçou repetidamente cancelar as eleições se o sistema de votação atual continuar em vigor — e embora o Congresso tenha recentemente rejeitado sua proposta de emitir recibos impressos, continua a lançar dúvidas sobre o sistema eleitoral. (Parece familiar? Alguém?)

E tem também a corrupção. Há um número crescente de acusações de corrupção contra o presidente e dois de seus filhos, que também detêm cargos públicos. (Um deles é senador e o outro é vereador do Rio de Janeiro.) Promotores sugerem que a família Bolsonaro participou de um esquema conhecido como “rachadinha,” que consiste em contratar familiares ou pessoas próximas como funcionários e embolsar uma parte de seus salários.

Para Bolsonaro, que foi eleito em parte com a promessa de acabar com a corrupção, essas investigações lançam uma pesada sombra. Diante desse cenário de inépcia e escândalo, os eventos de 7 de setembro foram uma tentativa de distrair e desviar a atenção pública — e, é claro, de cimentar a discórdia.

Os esforços para destituir Bolsonaro por meios parlamentares estão empacados. Ainda que a oposição tenha apresentado 137 pedidos de impeachment, o processo precisa ser iniciado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, que não parece inclinado a aceitá-los. (Isso não é nada surpreendente: Lira é um dos líderes de um conjunto de partidos de centro-direita conhecido como “Centrão,” a quem Bolsonaro distribuiu cargos importantes no governo, na esperança de se blindar contra processos de impeachment.) Apenas enormes manifestações populares são capazes de quebrar o impasse.

Não há tempo a perder. Os protestos da semana passada não foram um simples espetáculo político. Foram mais um passo para fortalecer a posição de Bolsonaro para uma eventual tomada de poder antes das eleições do ano que vem. Ele não conseguiu exatamente o que queria — os números, ainda que expressivos, foram muito menores do que os organizadores esperavam — mas ele vai continuar tentando.

O 7 de setembro agora marca um outro momento emblemático na história do Brasil — quando os objetivos totalitários do nosso presidente se tornaram inequívocos. Para a nossa jovem democracia, pode ser uma questão de vida ou morte.

Cinemagraph
James Marshall

The New York Times
Aug. 9, 2021

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Ler em português | Leer en español

SÃO PAULO, Brazil — I don’t know if it’s because I finally got my first Covid shot — maybe hope is a side effect of the AstraZeneca vaccine — but for the first time in this long pandemic, I feel that President Jair Bolsonaro may not succeed in destroying us all.

Yes, he’s trying hard: We have registered over 560,000 deaths so far — the second highest toll in the world after the United States’ — and the Delta variant is on its way. From the beginning, the president sabotaged attempts to curb the transmission of the virus, sponsored ineffective treatments, helped to disseminate fake news and allowed, through his negligence, another variant of the virus to spread.

But even Mr. Bolsonaro couldn’t crack Brazilians’ unbreakable love of vaccines. Despite everything — deaths, economic disaster, untold suffering — we haven’t succumbed to despair. Instead, we remain among the world’s most passionate enthusiasts for inoculation.

It hasn’t always been this way. Last December, almost one-fourth of Brazilians planned to refuse to take the vaccine. Back then, the president was saying that he was “not going to get vaccinated, period,” and that citizens would have to sign a liability waiver to get their shots. Mr. Bolsonaro also exaggerated the side effects of vaccines, suggesting that Pfizer’s vaccine might turn people into crocodiles. But as soon as our national vaccination campaign began, in late January, the hesitancy started to dissipate. The more people got the vaccine, the more others wanted to get it as well.

It happened almost naturally, as if people had simply returned to their senses. First, there was the viral sensation of “Vacina Butantan,” a hypnotic remix by a funk musician named MC Fioti celebrating inoculation. Filmed inside one of Brazil’s top biomedical research institutes — complete with dancing staff — it soon racked up 13 million views on YouTube. When Rio de Janeiro started, on Feb. 1, to vaccinate those aged 99 and over, there was widespread delight: The vaccine was on its way. Soon came the long lines of cars, stretching as far as the eye could see, as people eagerly waited for their turn.

Mr. Bolsonaro’s efforts to deter vaccination were coming unstuck. Then, in March, things got worse for him. A Supreme Court judge tossed out several corruption cases against former President Luiz Inácio Lula da Silva, Mr. Bolsonaro’s greatest rival, restoring his political rights and clearing the way for a presidential run next year. In his first speech afterward, Mr. Silva condemned the government’s mishandling of the pandemic and urged people to get vaccinated.

Hours later, like magic, Mr. Bolsonaro appeared in public wearing a mask and saying that he had always supported vaccination. By the end of the month, the number of Brazilians who refused to be vaccinated had plummeted to 9 percent. By July, that had dropped to 5 percent, putting the country among the most vaccine-happy nations in the world.

You can see the enthusiasm for vaccination in the uptake rates, too. The elderly population in Brazil, one of the first groups targeted for vaccination, has been impressively well inoculated: 87.5 percent of those older than 65 have been fully vaccinated — a greater proportion than in the United States, where vaccines are much more readily available.

In fact, I noticed the other day that I don’t personally know anyone who is not going to take the shot, even among those who voted for Mr. Bolsonaro and still defend him, and those who were initially hesitant. It’s not just in my social circle: Mr. Bolsonaro’s eldest son — who I definitely do not know — recently received the first shot himself. A few months ago, the president’s chief of staff was caught on camera admitting that he “secretly” got his jab. In another emblematic example of Brazilians’ yearning for vaccination, a fugitive from justice, instead of heading for the hills, got into a vaccination line — but was arrested before he succeeded. (I feel for him!)

This doesn’t mean that the rest of our trajectory in this pandemic is any less tragic: We continue to record close to a thousand Covid-19 deaths a day. The country still struggles to adhere to some of the most basic measures to curb the transmission of the virus, like social distancing and proper use of masks, and outright fails with some others, like mass testing and contact tracing. Most of all, though, we simply don’t have enough vaccines to match our eagerness for a jab.

Let’s not forget — ever — the fact that Brazil’s Ministry of Health ignored 101 emails from Pfizer offering vaccines, according to the parliamentary inquiry into the government’s handling of the pandemic. The ministry also turned down 42.5 million doses from Covax, the World Health Organization’s vaccine-sharing initiative, while the government tried to push ahead with obscure, potentially corrupt vaccine deals.

As a result, while our health care system could have been easily vaccinating more than two million people every day, some cities keep running out of doses. The rollout is still painfully slow; six months later, only 21 percent of the population is fully immunized. Our neighbors Chile and Uruguay are doing much better, with 65 percent.

But the hope is unequivocal. After all, it seems that not even one of the worst leaders in the world — with his mad plans, his incompetence and his fake news — was capable of shaking Brazilians’ confidence in vaccines and our public health care system.

We might even survive to see him lose his job.


A version of this article appears in print on Aug. 11, 2021, Section A, Page 18 of the New York edition with the headline: Brazil Will Survive Bolsonaro.

James Marshall

The New York Times
9 de agosto de 2021

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Read in English | Leer en español

SÃO PAULO, Brasil — Não sei se é porque eu finalmente tomei a primeira dose da vacina contra Covid — talvez esperança seja um efeito colateral da vacina da AstraZeneca — mas pela primeira vez nessa longa pandemia, sinto que o presidente Jair Bolsonaro talvez não consiga destruir todos nós.

Sim, ele está se esforçando muito: até o momento, temos mais de 560 mil mortes registradas — o maior índice do mundo depois dos Estados Unidos — e a variante Delta ainda está chegando. Desde o começo, o presidente sabotou as tentativas de conter a transmissão do vírus, apoiou tratamentos ineficazes, ajudou a disseminar notícias falsas e viabilizou, através de sua negligência, a disseminação de outra variante do vírus.

Mas mesmo Bolsonaro não foi capaz de danificar o amor indestrutível dos brasileiros pelas vacinas. Apesar de tudo — mortes, desastre econômico, sofrimento indescritível — nós não sucumbimos ao desespero. Em vez disso, continuamos sendo um dos países mais apaixonados por imunização.

Não foi sempre assim. Em dezembro, quase um em cada quatro brasileiros planejava recusar a vacina. Naquela época, o presidente dizia: “Não vou tomar vacina. E ponto final,” e acrescentava que os cidadãos teriam de assinar um termo de responsabilidade para tomar o imunizante. Bolsonaro também exagerou o efeito colateral das vacinas, sugerindo que a da Pfizer podia transformar a pessoa em um jacaré. Mas logo que a nossa campanha nacional começou, em fins de janeiro, a hesitação começou a se dissipar. Quanto mais pessoas tomavam a vacina, mais outras queriam tomar também.

Aconteceu quase que naturalmente, como se as pessoas tivessem apenas voltado à razão. Primeiro, tivemos a viralização de “Vacina Butantan,” um remix hipnótico criado pelo funkeiro MC Fioti para celebrar as vacinas. Filmado dentro de um dos principais institutos de pesquisa biomédica do Brasil — inclusive com funcionários dançando — o videoclipe logo acumulou 13 milhões de visualizações no YouTube. Quando, em 1º de fevereiro, o Rio de Janeiro começou a imunizar as pessoas com 99 anos ou mais, houve uma alegria generalizada: a vacina estava a caminho. Logo vieram as longas filas de carros, estendendo-se até onde a vista alcançava, conforme as pessoas esperavam avidamente sua vez.

Os esforços de Bolsonaro para deter a imunização estavam fracassando. Então, em março, as coisas ficaram ainda piores para ele. Um juiz do Supremo Tribunal Federal determinou a anulação de várias condenações de corrupção contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o principal rival de Bolsonaro, restabelecendo seus direitos políticos e abrindo caminho para sua candidatura à presidência no ano que vem. Em seu primeiro discurso após o fato, Lula condenou a conduta do governo diante da pandemia e encorajou a população a se vacinar.

Horas depois, feito mágica, Bolsonaro apareceu em público usando máscara e dizendo que sempre apoiou a vacinação. No final desse mês, o número de brasileiros que rejeitava a vacinação despencou para 9 por cento. Em julho, caiu para por cento, o que coloca o país entre as nações mais fanáticas por vacina do mundo.

Também é possível constatar nosso entusiasmo analisando as taxas de cobertura vacinal. No Brasil, os idosos, que foram um dos primeiros grupos prioritários da campanha, estão sendo particularmente bem vacinados: 87.5 por cento das pessoas maiores de 65 anos estão completamente imunizadas — uma proporção maior do que a dos Estados Unidos, onde as vacinas estão bem mais disponíveis.

De fato, percebi outro dia que não conheço pessoalmente ninguém que não vai tomar a vacina, mesmo entre aqueles que votaram em Bolsonaro e ainda o defendem, e entre aqueles que estavam inicialmente hesitantes. E não é apenas em meu círculo social: até o filho mais velho de Bolsonaro — que eu definitivamente não conheço — recebeu recentemente sua primeira dose. Meses atrás, o ministro-chefe da Casa Civil foi flagrado em uma transmissão admitindo que tomou “escondido” a vacina. Em outro exemplo emblemático da ânsia dos brasileiros pela vacina, um foragido da Justiça, em vez de correr para as montanhas, entrou numa fila de vacinação — mas foi preso antes de conseguir sua dose. (Fico triste por ele!)

Isso não significa que o resto de nossa trajetória nessa pandemia é menos trágico: continuamos registrando quase mil mortes diárias por Covid-19. O país ainda falha em respeitar algumas das medidas mais básicas para conter a transmissão do vírus, como distanciamento social e uso adequado de máscaras, fracassando abertamente em outras, como testagem em massa e rastreio de contatos. Acima de tudo, porém, simplesmente não temos vacinas suficientes para suprir nossa avidez.

Não podemos esquecer — jamais — o fato de que o Ministério da Saúde ignorou 101 e-mails da Pfizer com ofertas de vacinas, de acordo com a Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga as ações e omissões do governo durante a pandemia. O ministério também recusou 42.5 milhões de doses da Covax, iniciativa de distribuição de vacinas da Organização Mundial de Saúde, enquanto o governo tentava avançar em acordos obscuros e potencialmente corruptos para comprar vacinas.

Como resultado, enquanto nosso sistema de saúde poderia estar vacinando com facilidade mais de 2 milhões de pessoas por dia, algumas cidades estão continuamente ficando sem doses. A campanha ainda é dolorosamente lenta; seis meses depois, só 21 por cento da população está completamente imunizada. Nossos vizinhos Chile e Uruguai estão muito mais avançados, com 65 por cento.

Mas a esperança é inequívoca. Afinal, parece que nem mesmo um dos piores governantes do mundo — com seus planos insanos, sua incompetência e suas notícias falsas — é capaz de abalar a confiança dos brasileiros nas vacinas e em nosso sistema público de saúde.

Talvez sejamos capazes de sobreviver para vê-lo perder o emprego.


Vanessa Barbara é a editora do sítio literário A Hortaliça, autora de dois romances e dois livros de não-ficção em português, e escritora de opinião do The New York Times. Tradução para o português da autora.

Uma versão deste artigo apareceu na edição impressa do The New York Times em 11/08/2021, Section A, Page 18 com o título: Brazil Will Survive Bolsonaro.