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The New York Times
1 de julho de 2016

by Vanessa Barbara
Contributing Op-Ed Writer

RIO DE JANEIRO — É oficial: os Jogos Olímpicos no Rio são um desastre não natural.

Em 17 de junho, a menos de cinquenta dias do início da Olimpíada, o Rio de Janeiro declarou “estado de calamidade pública”. Segundo o decreto, uma crise financeira vem prevenindo o governo de honrar com os seus compromissos para com a realização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos. A crise é tão grave que pode ocasionar “o total colapso na segurança pública, na saúde, na educação, na mobilidade e na gestão ambiental”. As autoridades agora estão autorizadas a adotar as medidas excepcionais necessárias à racionalização de todos os serviços públicos essenciais, e o estado está apto a receber fundos de emergência do governo federal.

Medidas como essa são geralmente tomadas por causa de terremotos ou enchentes. Mas os Jogos Olímpicos são uma previsível e evitável catástrofe feita pelo homem.

Fui ao Rio recentemente para ver como estão indo as preparações para os jogos. Spoiler: nada bem. A cidade é um enorme canteiro de obras. Há tijolos e canos empilhados por toda parte; alguns operários empurram preguiçosamente carrinhos de mão como se os jogos estivessem marcados para 2017. Ninguém sabe ao certo o que os locais irão se tornar, nem mesmo os operários: “É para a Olimpíada” era a resposta unânime, seguida por uma especulação sobre “tendas para os jurados de vôlei ou futebol, acho”.

Vista aérea da arena de vôlei de praia em Copacabana. Créditos: Rafael Fabres para The New York Times

 

Pedi à assessoria de imprensa da Rio 2016 para fazer uma visita às arenas, mas eles me ignoraram olimpicamente. Consegui ver uma parte do Parque Olímpico da Barra, que irá sediar a maioria dos eventos, após comprar um ingresso de última hora para uma partida de vôlei da Liga Mundial. Embora as construções estejam progredindo, parecem longe de estar “97% concluídas”, como alegaram recentemente os organizadores.

Também vi boa parte do Parque Olímpico de Deodoro, que está aparentemente aberto para quem quiser visitá-lo. Apenas fui entrando e encontrei arquibancadas abandonadas pela metade em plena tarde de sexta-feira.

Os poucos projetos que já foram concluídos não inspiram muita confiança. Em abril, uma ciclovia recém-construída na orla da praia desabou, matando duas pessoas.

Os trabalhos na arena de vôlei de praia foram paralisados por falta de licenças ambientais. Então a estrutura foi danificada pelas ondas. Os operários ergueram uma barreira de areia de dois metros de altura para proteger o canteiro de obras. O muro também protege assaltantes; os turistas estão sendo roubados atrás dele. Um operário me contou ter visto um homem sendo esfaqueado ali atrás, e recomendou que eu fosse embora. Os assaltantes estavam tão à vontade que deixaram na areia suas mochilas e uma cadeira de praia.

Operários preparam a arena de vôlei de praia em Copacabana. Créditos: Rafael Fabres para The New York Times

 

A segurança é um dos principais motivos de apreensão entre atletas e turistas – e eles têm razão em se preocupar. De acordo com um jornal local, há disputa de território entre facções de traficantes em pelo menos vinte comunidades.

Oito anos atrás, o governo implementou as Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), forças de segurança altamente armadas que tentam recuperar as favelas do poder dos traficantes. Mas as UPPs parecem ter intensificado a guerra, em vez de extingui-la. Este ano, 43 policiais foram assassinados no estado, e ao menos 238 civis foram mortos por intervenção policial. A ONU disse estar preocupada com a violência da Polícia Militar nas favelas, sobretudo contra crianças de rua. Todos temem um aumento de violência policial durante os jogos. O país irá empregar 85 mil agentes de segurança pública, entre soldados e policiais, o dobro do utilizado na Olimpíada de Londres.

Os frequentes tiroteios nas proximidades das arenas olímpicas e no caminho para elas também são motivo de preocupação: este ano, 76 pessoas foram atingidas por balas perdidas no Rio; 21 morreram. Em 19 de junho, mais de vinte homens com rifles e granadas invadiram o maior hospital público da cidade para libertar um chefe do tráfico da custódia policial, deixando uma pessoa morta e duas feridas.

Os 500 mil visitantes esperados durante o evento também devem se preocupar com a probabilidade de se perder em áreas perigosas: há escassez de placas e informações turísticas nas ruas e no transporte público. Eu, que sou brasileira, passei meia hora na estação central de trens tentando descobrir onde tomar o ônibus para o Parque Olímpico – e eu havia pesquisado antes. A cabine de informações localizada dentro da estação estava vazia. Lá fora, poucos pontos de ônibus continham dados sobre quais linhas passavam em que local. Tive de ficar pedindo informações para vendedores e transeuntes. A sorte é que falo português.

*

MAS como tudo ficou tão bagunçado? O dinheiro é um dos fatores. “O Rio de Janeiro está falido”, admitiu o governador interino Francisco Dornelles há duas semanas numa entrevista para a revista Época.

O governador titular está de licença para se tratar de um linfoma. Pouco antes do Natal, ele declarou estado de emergência no sistema de saúde, conforme hospitais fechavam as portas e faltava dinheiro para equipamentos, materiais e salários. Meses depois, o estado começou a atrasar os salários dos funcionários públicos e as aposentadorias. Os professores entraram em greve e os alunos ocuparam dezenas de escolas em protesto. O estado tem uma dívida de R$ 72 bilhões com o governo federal e de R$ 35 bilhões com bancos estatais e credores internacionais. A previsão é que o Rio de Janeiro feche as contas em 2016 com déficit de R$ 19 bilhões. Um empréstimo de mais R$ 3,5 bilhões já foi aprovado para cobrir os custos com segurança na Olimpíada.

O desastre fiscal pode ser atribuído a inúmeros fatores, incluindo uma crise econômica nacional – mas entre as causas prováveis estão a dramática expansão da folha de pagamento e os gastos descuidados com a Olimpíada.

Contudo, o prefeito da capital, Eduardo Paes, alega que a prefeitura está em boas condições financeiras e que a situação fiscal do estado não irá afetar as preparações para a Olimpíada.

Então, se não é só o dinheiro, o problema é também político. O Brasil, claro, está passando por uma enorme crise. A presidente Dilma Rousseff foi forçada a afastar-se no dia 12 de maio após alegações de haver manipulado o orçamento. A instabilidade política paralisou o país e congelou a economia. Decisões em reformas importantes e projetos de infraestrutura foram adiadas, e a incerteza desencorajou os investimentos. Mas Leonardo Picciani, que assumiu o Ministério do Esporte logo após o afastamento de Dilma, assegura que os jogos serão “fantásticos”. Quase tudo estava pronto quando ele assumiu, afirma.

Picciani também tentou minimizar as preocupações com o vírus Zika, declarando que todas as medidas preventivas foram tomadas. Isso não impediu atletas como Jason Day, o número um do golfe, de anunciar sua desistência dos jogos por causa da epidemia. Em uma carta aberta no mês passado, 150 médicos, bioeticistas e cientistas do mundo todo pediram que a Olimpíada fosse transferida de lugar ou adiada por esse motivo.

No Brasil, tais preocupações são em geral recebidas com escárnio. Primeiro porque agosto é mês de inverno, quando o clima estará mais seco e frio, o que significa menor quantidade de mosquitos. Segundo, e mais importante, porque o vírus parece ser um problema relativamente menor: de acordo com um cálculo, no Rio de Janeiro as mulheres têm dez vezes mais chances de serem estupradas do que de pegar Zika. (Os homens têm mais chances de tomar um tiro e morrer.)

Certamente não é a primeira vez que um país-sede organiza uma Olimpíada que parece se tornar desastrosa. Os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014 em Sochi, na Rússia, foram tomados por relatos de encanamentos deficientes em hotéis porcamente construídos. O medo da gripe suína rondou os jogos de 2010 em Vancouver, no Canadá. A Grécia mal havia terminado a construção antes da cerimônia de abertura em 2004.

Talvez, como às vezes acontece no Brasil, tudo corra bem e a Olimpíada seja um sucesso. Os jogos irão completar um período de dez anos de megaeventos no Rio que começaram com os Jogos Pan-Americanos em 2007, seguidos pelos Jogos Mundiais Militares em 2011, a Copa das Confederações FIFA em 2013 e a Copa do Mundo FIFA 2014. Curiosamente, todos decorreram sem catástrofes muito evidentes. (O mesmo pode ser dito sobre o Carnaval e o Réveillon, que atraem milhões de turistas à cidade todo ano.)

Ponte sendo construída para uma nova linha de metrô no Rio de Janeiro. Créditos: Rafael Fabres para The New York Times

 

Mas todos esses projetos tiveram uma coisa em comum: os cidadãos normais foram excluídos do processo de decisão. O governo tem usado os jogos para acelerar certos projetos de desenvolvimento – nem todos prioridades públicas. O prefeito brincou sobre o assunto numa entrevista de 2012 para a TV Folha: “Esse negócio de Olimpíada é sensacional, preciso usar como desculpa pra tudo, então tudo o que eu tenho que fazer agora vou fazer para a Olimpíada. Isso é para a Olimpíada. Tem coisa que tem a ver com a Olimpíada, tem coisa que não tem nada a ver, mas eu uso.”

A favela Providência é um bom exemplo do que há de errado com o modo de proceder do prefeito. Os moradores do local pediram água e saneamento básico; em troca ganharam um teleférico de R$ 75 milhões, sobretudo para turistas. De modo similar, seis novas estações de metrô serão construídas numa linha que liga bairros ricos ao Jardim Oceânico, uma estação relativamente próxima ao Parque Olímpico. Mas a maioria dos cariocas teria preferido a construção de uma outra linha que liga o centro às municipalidades menos chiques de Niterói e São Gonçalo, onde moram muitos trabalhadores, um projeto que teria custado metade do preço.

Até agora, o custo previsto da Olimpíada é de R$ 39,1 bilhões. Mais de 40% virá do dinheiro público, o resto da iniciativa privada. Mas os críticos alegam que o orçamento oficial não inclui isenções fiscais dadas às empresas envolvidas na organização e hospedagem do evento, nem o custo de arquibancadas temporárias ou as indenizações dadas a famílias removidas de suas casas para dar lugar a construções olímpicas.

De acordo com um relatório divulgado em novembro por um comitê que está monitorando os preparativos para a Olimpíada, ao menos 4.120 famílias foram removidas por motivos relacionados aos jogos. (O governo contesta essa cifra, dizendo que muitos dos removidos viviam em áreas sujeitas a enchentes e desabamentos.) “Em todos os casos, as remoções aconteceram sem que os moradores tivessem acesso às informações que justificassem a necessidade de remoção e sem que o projeto de urbanização para a área fosse debatido com os moradores e a sociedade”, diz o relatório. Essas famílias muitas vezes receberam indenizações bem abaixo do valor de mercado ou, com sorte, novos apartamentos em bairros distantes até 60 quilômetros de suas residências originais.

Moradores de rua me contaram que estão sendo expulsos das calçadas pela polícia e transferidos para abrigos imundos, com vistas a “limpar” as ruas para receber o fluxo de visitantes. As remoções às vezes acontecem às 3 da manhã e contam com a ajuda de cães, spray de pimenta e até cavalos. Há também relatos de que crianças de rua têm sido arbitrariamente recolhidas e depositadas em centros de detenção juvenil.

Alguém irá lucrar com os jogos, mas não será a maioria da população do Rio. Cerca de 80% dos investimentos foram feitos na vizinhança abastada de Barra da Tijuca, também conhecida como “a Miami do Rio”. Um campo de golfe olímpico foi construído na região, dentro de uma Área de Proteção Ambiental. A cidade já conta com dois outros campos de golfe, sendo que pouquíssimos brasileiros se dedicam ao esporte.

Dois dos maiores vencedores da Rio 2016 serão os empreiteiros e proprietários de terras – sobretudo Carlos Carvalho, que detém cerca de 6 milhões de metros quadrados de terras no interior e nos arredores do Parque Olímpico da Barra e da Vila dos Atletas. No ano passado, ele disse ao The Guardian que queria ver a Barra limpa de comunidades pobres. Quando os jogos chegarem ao fim, a vila será convertida em um condomínio de luxo chamado “Ilha Pura”.

O governador estava certo: é uma calamidade.