Arqueologia de um casamento

Postado em: 26th outubro 2015 por Vanessa Barbara em Crônicas
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Blog da Intrínseca
22 de outubro de 2015

por Vanessa Barbara

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Num famoso discurso na Unesco, o escritor malinês Amadou Hampâté Bâ disse que, na África, “cada velho que morre é uma biblioteca que queima”. Com o perdão da comparação tosca, pode-se dizer que, da mesma forma, toda vez que um relacionamento acaba, é um universo que desmorona: um repertório enorme de piadas internas, viagens, filmes, cartas de amor, lugares, canções, rotinas e lembranças que se perdem.

Lançado há pouco mais de uma semana, meu romance Operação impensável é o resgate narrativo de um amor do passado, feito justamente por uma historiadora. É o relato da jovem Lia, que se apaixona por um programador de computadores extrovertido e charmoso chamado Tito. Juntos eles constroem um mundo próprio cheio de regras esdrúxulas e expressões que só eles entendem, como frases retiradas de jogos de computador, declarações de amor inspiradas em filmes que assistiram juntos e até bravatas proferidas por líderes comunistas.

Lia é especialista em história da Guerra Fria, e ambos são viciados em um jogo de tabuleiro chamado Twilight Struggle, uma batalha entre Estados Unidos e União Soviética que a todo momento corre o risco de acabar em guerra nuclear. O que, no início, é apenas uma brincadeira, acaba emulando o desenrolar do relacionamento de Lia e Tito, numa lenta escalada de dominação insidiosa, mentiras e conflitos até o dolorido embate final.

Durante o período de paz, o tom de Operação impensável é justamente o de arqueologia sentimental. Desde o início, Lia adiciona à mistura vários trechos de um documento de tolice incontestável: O grande livro do cinema, no qual ambos registravam suas incursões cinematográficas. A lista incluía a ficha técnica e a sinopse dos filmes, além de observações como: “Esta data marca a primeira demonstração de descaso com o aparelho novo de DVD” ou “A primeira queda do controle remoto”. Num determinado filme, por exemplo, Lia “ficou confusa porque todos os personagens tinham bigode”, e, em outra sessão, “colaborou para a incompreensão da trama o fato de Tito ter caído no sono e passado a roncar ruidosamente”.

Em seu esforço quase acadêmico de sistematização amorosa, Lia também registra um índice onomástico de referências compartilhadas pelo casal. Um exemplo é o verbete: “Água na cara, jogar”. Na explicação, o leitor descobre que uma das maiores diversões de Lia e Tito era simular uma briga durante o jantar e arremessar um copo de água na cara do outro. Ela escreve: “De início, praticávamos o rompante aquoso dentro do boxe do banheiro, onde podíamos controlar a quantidade de líquido e a força do arremesso; depois passamos para a sala de estar, vestidos apropriadamente para um jantar chique”. A graça estava em dizer uma frase de efeito, tipo: “Seu canalha! Você realmente saiu com ela!”, e jogar a água quando o outro estivesse prestes a protestar, “de modo que, além de encharcar o rosto do adversário, fosse grande a possibilidade de fazê-lo engasgar”.

(Outros verbetes dignos de nota são: “panda”, “pijama de flanela” e “pato”, animal que, no entender de Tito e Lia, é “nada mais que uma galinha impermeável”.)

A protagonista também fala dos animais de estimação da casa, três gatos e duas tartarugas, e de como o casal gostava de passar a tarde inteira conversando sem parar, interrompendo um ao outro numa barafunda enlouquecida de bobagens e contando histórias sem clímax.

É como se ela desejasse captar instantâneos de uma cidadela perdida, usando para isso todos os recursos possíveis. O resultado, que compreende o “Período de Paz” de Operação impensável, é um álbum de colagens que mistura bilhetes apaixonados, diálogos pelo telefone, calendários, piadas soviéticas, trechos de romances, uma lista de implementações domésticas promovidas por Lia e relatos diretos sobre incidentes ocorridos no dia a dia da dupla.

A impressão é a de que ela precisa coletar e narrar o máximo possível de facetas do casamento, antes que ele seja cortado para sempre da memória, “como o excesso de tecido que cai da mesa de uma costureira”.

 


Leia um trecho de Operação Impensável

Vanessa Barbara nasceu em São Paulo em 1982, é jornalista e escritora, colunista dos jornais The International New York Times e O Estado de S. Paulo. Traduzida para seis idiomas, recebeu o Prêmio Jabuti de Reportagem em 2009 e foi escolhida pela revista Granta como um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros. Operação Impensável é seu sétimo livro.