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Festa Literária Internacional de Paraty – Flip 2013
6 de julho de 2013

por Vanessa Barbara

Uma conversa entre duas figuras elegantes, à meia-voz, marcou a mesa “Traduzindo Flaubert”, que ocorreu no final da tarde desta sexta-feira, em Paraty.

No ambiente intimista do auditório da Casa de Cultura, a escritora norte-americana Lydia Davis e o tradutor Samuel Titan Jr. falaram sobre os desafios de traduzir Gustave Flaubert. O debate, que teve mediação do jornalista Guilherme Freitas, versou sobre a dificuldade de encontrar equivalentes para a famosa “palavra justa” do romancista francês, que se notabilizou pelo perfeccionismo e pela busca de perfeição vocabular.

Titan, que assinou a tradução de Três Contos (CosacNaify, 2004) em co-autoria com Milton Hatoum, explicou, logo de saída, que o estilo de Flaubert consiste justamente na ausência de floreios retóricos e gestos eloquentes – o que, no século XIX, chegou a ser considerado sinônimo de má escrita e ignorância gramatical. “Durante a tradução, temos de resistir ao impulso de tornar elegante ou polido o que é áspero no original”, disse, apelidando esse fenômeno de “vontade de melhorar Flaubert”. Ele também comentou sobre a necessidade de empregar palavras que tenham a mesma conotação moral do original.

Falando baixinho, a simpática Lydia Davis, que há três anos traduziu Madame Bovary para o inglês, observou que nenhuma das antigas edições norte-americanas era fiel ao estilo flaubertiano, tomando liberdades desnecessárias em nome da clareza ou da elaboração formal. Afirmou ter sentido muita dificuldade com a sintaxe e o “uso bizarro do ponto-e-vírgula” que cortava bruscamente as frases do escritor.

“Devemos confiar no autor e não tirar conclusões próprias”, ela defendeu, usando como exemplo uma cena de Madame Bovary em que damas flanavam pelo salão segurando “pequenos frascos”. Alguns tradutores optaram por escrever “frascos de perfume”, mas, consultando os rascunhos do romance, Davis descobriu que se tratavam de frascos de vinagre utilizados para despertar donzelas desmaiadas. Mesmo sabendo disso, ela escreveu apenas “pequenos frascos”, conforme o desejo do autor, e acrescentou uma nota explicativa.

Usando essa mesma lógica, Samuel Titan Jr. criticou a tradução do título Um coração simples para Um coração singelo, numa edição antiga do livro. Essa opção é um erro, pois o termo “singelo” é açucarado demais e prescinde da neutralidade do original. Para ele, tais julgamentos somente são possíveis quando o tradutor desenvolve uma espécie de “ouvido” para as palavras.

Empolgado, Titan afirmou que Madame Bovary transcende as fronteiras da literatura francesa, representando o ápice de um processo evolutivo do romance que começou com Dom Quixote, de Cervantes. “Não por acaso Madame Bovary foi chamada de ‘Dom Quixote de saias’, o que não é só uma piada tola”, afirmou, atribuindo a Flaubert a fundação da modernidade literária.

A pedidos da plateia, ambos terminaram falando sobre o “Dicionário de Ideias Feitas”, uma compilação de lugares-comuns coletados pelos heróis de Bouvard e Pécuchet, que copiavam trechos de obras sempre que detectavam algum sinal de estupidez. Classificado por Lydia Davis como “radical”, o derradeiro romance de Gustave Flaubert ficou inacabado.

“Em todo caso, a intenção era escrever um livro que, uma vez pronto, deixaria o leitor sem saber se estão ou não zombando dele”, concluiu Titan.