Ciborgues no comando

Postado em: 29th abril 2012 por Vanessa Barbara em Crônicas, Folha de S. Paulo
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Folha de S.Paulo – revista sãopaulo
29 de maio de 2012

VANESSA BARBARA, COLUNISTA DA FOLHA

Distribuídos ostensivamente pelas plataformas da rodoviária, os relógios patrocinados pela Cia. do Terno parecem vigiar os vigias. O chão é lustroso, os coques das funcionárias bem presos e há um “mix comercial” de 78 lojas reluzentes, coloridas, entulhadas de anúncios e quinquilharias. É o Tietê Station Center.

Na última década, a rodoviária Tietê tornou-se um “espaço limpo e seguro que se assemelha ao conceito dos aeroportos e shoppings”, segundo release da Socicam (empresa que administra o terminal). Tudo é organizado e padronizado, os ônibus saem no horário, os lanches são caríssimos e é terminantemente proibido tirar fotos. Ninguém pode falar com os funcionários sem autorização prévia. Ao que tudo indica, a alta cúpula da Socicam teria sido substituída por ciborgues.

Ciborgues, como todos sabem, não têm coração, por isso a estação perdeu um pouco o calor humano e a graça. Suas tabacarias, perfumarias, cafés e LAN houses são proibitivas para a maioria dos usuários, que ficam com vergonha de tirar os sapatos para descansar os pés. Há menos chulé e mais óculos Ray-Ban, mais mensagens automáticas nos alto-falantes e menos salgadinhos de queijo grudados nas solas dos transeuntes.

Ainda que os ciborgues da Socicam tentem manter sob controle os elementos mambembes dessa estação comercial-cibernética, é possível encontrar gente furtiva lavando morangos no banheiro, longe das câmeras, puxando os cabinhos e resistindo à dominação robótica.

A Socicam é como esses avisos que a gente vê nos bebedouros e nos banheiros públicos: “Proibido encher garrafas”, “Proibido lavar os cabelos” e “Proibido lavar marmitas”. A empresa controla 45 terminais rodoviários pelo país (Brasília, Campinas, Rio de Janeiro) e 43 terminais urbanos como se fossem propriedade privada.

Temo que, no futuro, não seja mais permitido jogar conversa fora e tirar cochilo nos bancos. Os bancos, aliás, estão cada vez mais escassos, pois que incentivam a vadiagem, e logo será ilícito chegar cedo demais, entrar nas lojas para trocar uma nota de 20 e trazer comida de casa.

A rodoviária é uma cidade de pessoas que chegam e vão embora na mais perfeita ordem, e de outras que revolucionariamente ficam, tirando o cabinho dos morangos, feito membros da Resistência.


VANESSA BARBARA, 29, é autora de um livro sobre a rodoviária, “O Livro Amarelo do Terminal” (2008, Cosac Naify), vencedor do prêmio Jabuti de reportagem. Escreve na “Ilustrada” às segundas-feiras