A solidificação da polenta

Postado em: 4th agosto 2009 por Vanessa Barbara em Crônicas
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Revista Cláudia n. 48
Agosto de 2009
especial Dia dos Pais

por Vanessa Barbara

Quando eu tinha 7 anos, minha ideia de êxito intelectual envolvia necessariamente o Manual de Refrigeração e Ar Condicionado (eng. Raul Peragallo Torreira, Editora Fulton, 1 330 págs.), um guia prático de como proceder com o gelo e a escarcha que se acumulam nas serpentinas dos sistemas de refrigeração. Meu pai é engenheiro mecânico, e eu julgava que só seria uma pessoa decente se um dia conseguisse ler o livro inteiro. Até hoje acho. Nunca concluí a empreitada, mas pautei minhas amizades e preferências pessoais com base nessa bíblia do resfriamento – por exemplo: não confio em quem não se dedica a nenhuma esquisitice deste mundo, seja hino de times de futebol, astrofísica, Macintosh ou patinação no gelo. E tem que ser uma dedicação cega, um envolvimento quase patológico, de preferência inversamente proporcional à utilidade da coisa.

No caso, meu pai sabe tudo sobre o calor latente de solidificação da polenta. Mas não é só isso. Ele gosta de fazer tabelas com as despesas mensais da casa e o saldo de gols em amistosos do Corinthians, traçando as linhas a lápis, com a ajuda de uma régua e uma calculadora científica. O histórico das campanhas do time tem sido registrado desde 1978, no verso de enormes plantas de supermercado. Ele se interessa igualmente pelo ciclo evolutivo das lagartas do quintal, pela meteorologia da semana e às vezes assiste Ferroviária vs. Jaboticabal pela segunda divisão do Campeonato Paulista. E sabe as escalações. Quando é dia de ajustar os relógios para o horário de verão, ele resolve tudo às 9 da noite e depois vai dormir, que é para não ficar ansioso. Me passa dicas práticas tanto para sincronizar o adiantamento dos relógios, com especial atenção aos de parede, quanto para elaborar trajetos de ônibus quando cruzo a cidade. Na área de estocagem, meu pai é muito diligente com os ovos da geladeira, que devem ser consumidos na ordem em que foram comprados. Também é temente ao dia da coleta seletiva, e às vezes acho que produz lixo apenas para preencher a totalidade do saco. (Um dia, ele foi pego na cozinha tirando coisas do lixo reciclável e transportando-as para o lixo orgânico por puro senso de equilíbrio.)

Levando em conta que meu pai é metódico a ponto de enlouquecer a minha mãe, em um casamento que já dura mais de 30 anos, e considerando também que meu avô enlouquece a minha avó há mais de 56 primaveras, procurei eu alguém que me enlouquecesse na mesma proporção. Encontrei um que é viciado em MS-DOS, groselha, pinguins, ficção científica e tem uma estranha obstinação por feldspato. Pode passar madrugadas inteiras obcecado por assuntos que não interessariam a mais ninguém, entrando num curioso transe de duração indefinida. Foi quando resolvi me casar.

Resultado: se meu pai andava de lá para cá com um radinho de pilhas colado ao ouvido esquerdo, hoje meu marido caminha pela casa jogando Zelda no Nintendo DS. Os dois dão risada alto, acham graça nas piadas mais lamentáveis e adoram café – do que se conclui, portanto, que as mulheres da família têm uma tendência genética a perpetuar suas boas escolhas, por mais irracionais que pareçam.

 


Vanessa Barbara, jornalista e escritora, é cronista do jornal O Estado de S. Paulo. Publicou O Livro Amarelo do Terminal (ed. CosacNaify) e o romance O Verão do Chibo (ed. Alfaguara), com Emilio Fraia. É tradutora da editora Companhia das Letras.